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Patos, PB, Brazil
Professor de Filosofia e Literatura na Rede Privada de Ensino desde 2003 (Colégio Compacto); professor de Língua Inglesa no Município de São Mamede (CENEC); Militante Sindicalista ligado ao SINFEMP (Patos e São Mamede); Diretor Estadual de Imprensa e Divulgação da CTB/PB

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

ANÁLISE LITERÁRIA I (MISS ALGRAVE)

ANÁLISE DO CONTO MISS ALGRAVE, DA OBRA "VIA CRUCIS DO CORPO", DE CLARICE LISPECTOR

Em um de seus depoimentos, Clarice Lispector diz: “Meus livros, felizmente para mim, não são superlotados de fatos, e sim, da repercussão dos fatos nos indivíduos” (LISPECTOR, apud BORELLI, 1981, p. 28). Nesse sentido, nosso objetivo nesta análise é o de mostrar como tal repercussão aparece em sua obra, especificamente, em um conto — “Miss Algrave”.
O conto retrata a história de uma mulher pudica (personagem Ruth Algrave), que se reprime e vê em tudo algum tipo de pecado. Em sua alimentação, não come carne; em sua higiene, ao tomar banho, não se despe; não vê TV, pois acha o que é mostrado obsceno — um homem e uma mulher se beijando, por exemplo. Para ela, ser uma “datilógrafa perfeita”, tomar o seu chá, alimentar os pombos de sua janela, visitar velhinhas é o que lhe parece felicidade.
Em uma visita que recebe Ruth Algrave, visita de alguém não visto, a felicidade é sentida, isto é, ela conhece o que é viver. Após experimentar o gozo, percebe que, aquilo que anteriormente considerava pecado, agora, constitui-se no prazer da vida. O lençol manchado de sangue é o troféu disso. A carne, antes abominada, passa a ser devorada com sangue; o vinho é degustado com prazer; além disso, resolve não ser mais a “datilógrafa perfeita”.
Sente saudade do que a proporcionou sentir o gozo, Ixtlan, e, para saciá-la, “convida” um homem no Picadilly Circle (a história se passa em Londres) para “acompanhá-la” ao seu apartamento. Ela usa seu dinheiro para comprar um vestido vermelho bem decotado. Pensa convidar seu chefe para “deitar-se” com ela e tem a certeza de que ele aceitará, já que ele vive com uma mulher insignificante, retrato do que ela, Miss Algrave, foi.
Retomando o depoimento dado por Lispector a Borelli, observamos que Ruth Algrave é uma personagem exemplar disso a que o depoimento se refere. A personagem consegue, por meio da oposição “essência” X “aparência”, fazer com que a essência venha à tona e que a aparência seja lateralizada. Isso se dá porque a personagem reage aos fatos que lhe acontecem.
Percebe-se então que a idéia da paixão enquanto sofrimento, enquanto padecimento está nessa personagem embutida. Miss Algrave padece o não conhecimento, padece a incerteza do ser-no-mundo. Esse padecimento, essa paixão necessária é a porta para o erotismo, erotismo que de certo modo empurra a personagem para o processo epifânico, para o descobrimento de si mesma e, por isso, a manifestação ao mundo.
A construção da personagem permite que ela possa ter tal reação diante de tudo o que ocorre com ela, de modo a provocar mudanças em sua vida. Prova disso é a carne, antes abominada, agora comida com sangue, isto é, a aparência cedeu à essência. “Então, no Domingo, na hora do almoço, comeu filet mignon com purê de batata. A carne sangrenta era ótima. E tomou vinho tinto italiano”. (LISPECTOR, 1998, p. 22)
Essa mudança caracteriza, possivelmente, o que Clarice Lispector entenda como “repercussão dos fatos nos indivíduos”. Dessa forma, Miss Algrave representa, com bastante propriedade, o existencialismo clariceano, que Coelho (apud BORELLI, 1981 p. 182) diz ser

a denúncia da superficialidade estéril da vida que aprisiona os indivíduos na rotina cotidiana, e a intuição ainda confusa de que haveria algo grandioso a ser descoberto para além das formas vulgares da vida — a verdadeira vida criativa que levaria os seres humanos à autodescoberta e à plenitude de existir”.

No conto, Miss Algrave protesta a todo instante e de toda maneira contra aquilo que ela julga imoral: o sexo. Na solidão de sua vida mesquinha e fútil, lembranças de suas primeiras manifestações sexuais a atormentam. Tudo corria, normalmente com Ruth Algrave, descendente de irlandeses, vivia para o
trabalho; era uma datilógrafa perfeita. Seu chefe nunca olhava para ela e tratava-a, felizmente, com respeito, chamando-a de Miss Algrave. Esses dados, são particularmente interessantes, pois fazem menção a uma personagem que será criada posteriormente por Lispector no livro A hora da estrela. Pois bem, se observarmos, atentamente, Ruth Algrave apresenta indícios da nordestina Macabéia. A personagem em questão é uma datilógrafa “estrangeira” numa cidade grande, ansiosa por encontrar alguém que a auxilie a romper as barreiras que traz em si. Logo de início, a narrativa nos aponta um problema: a solidão e a monotonia na qual vivia a mulher. Ela que, embora fosse possuidora de um corpo bonito, era virgem, ninguém a olhava; nem “nunca ninguém havia tocado nos seus seios.” (LISPECTOR, 1998, p.14) Ao que parece, esse é o grande problema, a personagem, cuja idade desconhecemos, mas ao que indica se encontra em meia idade, ainda não experienciou uma troca afetiva maior. Por isso, se fechara, ficando as lembranças a atormentá-la: “[...] quando era pequena, com uns sete anos de idade, brincava de marido e mulher com seu primo Jack, na cama grande da vovó. E ambos faziam tudo para ter filhinhos sem conseguir. Nunca mais vira Jack nem queria vê-lo. Se era culpada, ele também o era.” (LISPECTOR, 1998, p.13)
Pelo que se observa, a personagem carrega um sentimento de culpa que advém, entre outros            fatores, de um processo de repressão, que, conforme Chauí (2008, p. 49), foi responsável pela idéia da sexualidade como pecaminosa, imoral e viciosa. Segundo a autora, herdamos da cultura judaica cristã uma visão extremamente repressora da sexualidade, mais acentuadamente marcada, como sempre, para o contingente feminino. Nossas raízes culturais estão impregnadas de uma visão distorcida da sexualidade, onde a prática da repressão é o comportamento usual, ao menos para as mulheres, quando não também para os homens. Embora nossa civilização tenha, nos últimos séculos, vivido alguns momentos de maior liberalidade, essa visão distorcida da sexualidade foi a tônica principal, mantida durante todos esses séculos em que ela vem se cristalizando. Diga-se de passagem que, mesmo em seus momentos de mais liberdade, o exercício pleno da sexualidade sempre foi apanágio das pessoas adultas, que vêem com maus olhos a sexualidade dos adolescentes, ridicularizam as manifestações sexuais da terceira idade e negam - ao menos negaram até há poucas décadas - a sexualidade na infância. Esse paradigma de comportamento se faz sentir pelas mulheres construídas ao longo da produção literária de Lispector e outras mulheres da literatura brasileira. Nesse contexto, a mulher sente-se “desorientada” em relação a sua libido, aos desejos inerentes de seu corpo. Pensamos que advém desse fato o comportamento da personagem do conto em questão. É isso que faz Ruth Algrave manifestar um sentimento de repulsa com relação à sua sexualidade, fazendo-a até renegar seu próprio corpo e fechar os olhos aos casais que se beijavam ao seu redor, quando estava no Hyde Park . Não permitia a si os prazeres da carne, literalmente, (sequer comia carne). Não ousava olhar para não enxergar nada de ordem sexual, não se aproximava daquilo que poderia lhe causar prazer. Negava a sexualidade alheia, mais ainda, a sua própria, pois não conseguia olhar para seu próprio corpo. E encontro erótico começa com a visão do corpo desejado. Vestido ou desnudo, o corpo é uma presença, uma forma que, por um instante, é todas as formas do mundo. Por isso, a mulher do conto em análise procura fechar os olhos perante o corpo, pois sabe que percebê-lo, tocá-lo é abrir-se para fantasias e afastar-se do cotidiano. “Tomava banho só uma vez por semana, no sábado. Para não ver o seu corpo nu, não tirava nem as calcinhas nem o sutiã.” (LISPECTOR, 1998, p.14) Por esse trecho pode-se arriscar uma possível leitura freudiana da sexualidade: teria Ruth Algrave sofrido algum trauma em relação a sua sexualidade? Em “O mal-estar na civilização”, Freud aponta o papel desempenhado pelo amor na origem da consciência e a inevitabilidade do sentimento de culpa. Conforme o cientista a civilização impõe ao indivíduo certas normas que regula o seu desejo, gerando assim um conflito. Assim, o conflito passa a existir assim que os homens decidem viver juntos e enquanto a comunidade não assume outra forma que não a família, o conflito (eros X instinto de morte) se expressa no complexo edipiano, estabelece a consciência e cria o primeiro sentimento de culpa.

Conhecemos, assim, duas origens do sentimento de culpa: uma que surge do medo de uma autoridade, e outra, posterior, que surge do medo do superego. A primeira insiste numa renúncia às satisfações instintivas; a segunda, ao mesmo tempo em que faz isso, exige punição, de uma vez que a continuação dos desejos proibidos não pode ser escondida do superego. [...] em primeiro lugar, vem a renúncia ao instinto, devido ao medo de agressão por parte da autoridade externa. (é a isso, naturalmente, que o medo da perda do amor equivale, pois o amor constitui proteção contra essa agressão punitiva.) Depois, vem a organização de uma autoridade interna e a renúncia ao instinto devido ao medo dela, ou seja, devido ao medo da consciência. (FREUD, 1997, p. 100, os grifos são do autor)

O sentimento de repulsa, manifestado por Ruth Algrave e pelas personagens dos outros textos reunidos nesse livro, parece remeter aos dois aspectos de uma vivência culposa. Visto que, para Freud, o sentimento de culpa remete a duas origens, mas estas estão sempre relacionadas para o campo de estudo da consciência social, para a busca de entendimento de como os seres humanos na sua relação com o mundo social e natural, apreendem esses mundos e a si mesmos, enquanto seres pensantes. Eis a razão pela qual Ruth Algrave manifesta seu repúdio: “lamentava muito ter nascido da incontinência de seu pai e de sua mãe, sentia pudor deles não terem tido pudor.” (LISPECTOR, 1998, p. 16-17) Ela, então, cria uma situação imaginária para sua felicidade; imagina-se sendo deflorada por um ser de outro planeta, Ixtlan, vindo de Saturno.

Foi então que aconteceu.
Sentiu que pela janela entrava uma coisa que não era um pombo. Teve medo. Falou bem alto:
- Quem é:
E a resposta veio em forma de vento:
- Eu sou um eu.
[...] - vim de Saturno para amar você.
- Mas eu não estou vendo ninguém! Gritou.
E sentia-o mesmo. Teve um frisson eletrônico.

A partir desse ponto, pode-se perceber, duas faces do erotismo sendo despontada a partir do desenvolvimento da atitude da personagem.

O erotismo encarna duas figuras emblemáticas: a do religioso solitário e a do
libertino. Emblemas opostos, mas unidos no mesmo movimento, ambos negam a reprodução e são tentativas de salvação ou libertação pessoal diante de um mundo caído, perverso, incoerente ou irreal. (PAZ, apud COELHO 1983, p. 187).

Vê-se, pois que algo semelhante ocorre com Miss Algrave, de moça recatada, que repudia o sexo, passa a um comportamento inverso: a prostituta.
Nesse sentido, se pode compreender, que as personagens clariceanas, não encontrando no outro uma possibilidade de preenchimento de seu vazio, buscam a felicidade com o desconhecido, aspecto defendido pelos místicos cabalistas. Assim, pode-se afirmar que o processo de reversão da personagem brota da experiência mística. A personagem busca o amor pleno, no entanto, os limites impostos pela castração a impedem de encontrá-lo, o que a faz buscar um gozo para além do fálico.
O gozo é advindo do Eros, ele como porta mágica para o mundo novo, irreal para os outros, porém real para aqueles que o querem e o buscam. Para tudo isso incorre paixão, padecimento. Miss Algrave vive um gozo que só existiu após o padecimento, ela conhece a si após conhecer o seu corpo. Eis então a ligação entre paixão e erotismo.
A experiência mística passa, em primeiro lugar, pela experiência da dor, uma aflição no corpo, é o que ocorre com a mulher em questão. Sobre esse aspecto, é importante comentar que, nesse livro e, especialmente, nesse conto, Lispector, organiza um discurso, sobre o erotismo, numa espécie de jogo de paradoxos, em que - o desejo carnal de suas personagens ganha certa transcendência ao mesmo tempo em que é demasiadamente mundano - o ato sexual se transforma num ritual sagrado, em que a Divindade é o estrangeiro por excelência. Esse jogo entre sagrado e profano permeia a maioria de seus contos eróticos. Pode-se, então, falar em um Eros divino, um sexo místico pelo qual um Ser misterioso penetra, radicalmente, no corpo e na alma. Nesse contexto, o gozo de Ruth Algrave é altamente erótico no sentido divino. Ela constrói esse novo sexo místico. No caso da alma humana feminina, trata-se de um gozo e uma dor ao mesmo tempo. Como até então não ocorrera o gozo carnal, ocorre agora em outro plano, remetendo a uma relação com a divindade. “Deus iluminava seu corpo”. (LISPECTOR, 1998, p.18)

Eles se entendiam em sânscrito. Seu contato era frio como o de uma lagartixa. Dava-lhe calafrios. Ixtlan tinha sobre a cabeça uma coroa de cobras entrelaçadas, mansas pelo terror de poder morrer. O manto que cobria o seu corpo era da mais sofrida cor roxa, era ouro mau e púrpura coagulada. Ele disse: - Tire a roupa. Ela tirou a camisola. A lua estava enorme dentro do quarto. Ixtlan era branco e pequeno. Deitou-se ao seu lado na cama de ferro. E passou a mão pelos seus seios. Rosas negras. Ela nunca tinha sentido o que sentiu. Era bom demais Tinha medo que acabasse. Era como se um aleijado jogasse no ar o seu cajado. (LISPECTOR, 1998, p.16-17)

Vê-se, pela descrição do narrador, que se trata da “experiência interior”. Ao que se sabe, a experiência interior é um tipo de sentimento que não isola a matéria, não exclui o corpo. A experiência interior procura o êxtase, sem a exclusão do corpo e termina por afirmá-lo como lugar receptáculo do gozo. No corpo – o erotismo – o orgasmo é algo que não pode ser cercado pela razão, é algo que está completamente fora de toda apreensão e conhecimento – é um estado que está fora-de, é o êxtase.
Nesse livro, o grande personagem é o corpo feminino, depositário do desejo. Clarice mostra, por meio de uma linguagem recheada de simbologia, o conflito por que passa as mulheres em ter de esconder e, até mesmo, negar àquilo que lhe é inato: sua sexualidade. O leitor, por meio dessa personagem, assiste a impossibilidade de fazer calar o corpo desejante. Assim, dentre outros aspectos, a repressão é o processo que perdura no comportamento das personagens desse livro. Clarice, nessa obra, vem tratando desse tema, o da sexualidade reprimida, o da homossexualidade feminina, temas desconfortantes e pouco lidados em literatura. Constrói, para isso, figuras femininas para desenvolverem esse discurso. Percebe-se, nessa narrativa, a ocorrência de um processo de liberação. No início da história vemos a figura feminina numa posição desconfortante, no final ocorre uma libertação. As mulheres resolvem agir, tomar uma atitude que as tire da situação de opressão. A verdade é que elas tomam a decisão de serem felizes, mesmo que isso signifique ir contra as regras, as normas e conceitos - ou preconceitos - vigentes e respeitados. Esse é o território em que a escritura de Clarice se desenha: no “litoral” entre o ser e o dizer. Convém lembrar daquilo que orienta a psicanálise: o homem em sua incompletude assume um caráter irreparável e paradoxal. Entenda-se que, por estar submetido às leis da linguagem, que escamoteam a realidade, o homem está alienado do seu ser; e, sendo assim, requer sempre algo que o complete, que o represente. Observa-se, que o que incita, o desejo é o que está oculto, a partir do momento em que se expõe há uma vulgarização, ocorre a “morte” da libido. Se o sexo é reprimido o simples fato de falar dele, ou seja, a abertura constituísse uma transgressão. Remete, também, ao preceito de Barthes sobre o gozo. Salienta o filósofo francês que a abertura não é erótica e, sim a intermitência.

O lugar mais erótico de um corpo não é lá onde o vestuário se entreabre? Na perversão (que é o regime do prazer textual) não há ‘zonas erógenas’ expressão aliás bastante importuna): é a intermitência como o disse muito bem a psicanálise, que é erótica: a da pele que cintila entre duas peças (as calças e a malha), entre duas bordas ( a camisa entreaberta, a luva e a manga); é essa cintilação mesma que seduz, ou ainda: a encenação de um aparecimento-desaparecimento. (BARTHES, 1996, p. 17)

Assim, Clarice parece querer nos mostrar que o desejo feminino não passa somente pela questão da liberdade sexual. Suas personagens não procuram apenas a satisfação da carne, a materialização do desejo e sim buscam uma experiência do espírito que é o caminho da plenitude. Daí o retorno à carência, à incessante busca, à consciência do “impossível”, ou à consciência da morte, como lugar da superação de descontinuidade. Sua arte literária traz à tona uma dor existencial, secreta, dilacerante, às vezes carregada também, de ironia. Outras vezes brinda-nos com toque de humor. Na verdade sua literatura revela uma intensa paixão pela vida.


Professor José Fábio Marques de Santana
´Professor de Filosofia e Literatura no Colégio Compacto de Piancó
Professor de Língua Inglesa  na SMEC/São Mamede - PB

ADMOESTAÇÕES DE SÃO FRANCISCO XXII

DO RELIGIOSO FRÍVOLO E LOQUAZ

1Bem-aventurado o servo que não fala por interesse de recompensa nem manifesta tudo o que pensa nem é "precipitado no falar" (Pr 29,20), mas calcula antes sabiamente o que deve dizer e responder.
2Ai do religioso que não conserva no fundo do seu coração (cf. Lc 2,51) os bens com que o Senhor o favorece e aos outros não os manifesta por suas obras, mas antes, na esperança de alguma recompensa, procura mostrá-los aos homens por palavras.
3E esta ser toda sua recompensa, e os seus ouvintes colherão pouco fruto.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

ADMOESTAÇÕES DE SÃO FRANCISCO XXI

VERDADEIRA E FALSA ALEGRIA

1Bem-aventurado o religioso que não sente prazer nem alegria senão nas santas palavras e obras do Senhor
2e por elas conduz os homens em júbilo e alegria ao amor de Deus. 3E ai do religioso que se deleita com palavras ociosas e fúteis e, por esse meio, leva os homens a dar risadas.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

A EPIFANIA NAS OBRAS DE CLARICE LISPECTOR

EPIFANIA CLARICEANA

O título do primeiro livro de Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem, inspira-se em Joyce. A epígrafe dessa obra, publicada em 1944, é retirada do Retrato do artista quando jovem e diz textualmente: “Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida” (LISPECTOR, apud MELO, 2008, p. 13).
O texto precede uma das mais características epifânicas de Joyce, traduzida num longo trecho em que se faz presente o prazer da leitura. Elementos epifânicos fundamentais estão aí presentes, desde o seu começo: a visão transfigurada, o deslumbramento da beleza mortal, a contemplação, o silêncio sagrado, o som dos sinos do sono, a explosão de alegria profana, a revelação da vida, o arroubo, a aparição do anjo, a glória. 
Clarice Lispector inaugura a prosa romanesca com este momento da obra de Joyce. O termo epifania jamais usa e, se tem consciência desse processo, não o demonstra claramente.
Observa-se uma passagem de Perto do Coração Selvagem, que remete, apesar da situação diversa, ao episódio paradigmal da moça-na-água, de Joyce.  Trata-se do capítulo “O banho...”:

A água cega e surda, mas alegremente não-muda brilhando e borbulhando de encontro ao esmalte claro da banheira, o quarto abafado de vapores mornos, os espelhos embaçados, o reflexo do corpo já nu de uma jovem nos mosaicos úmidos das paredes.  
A moça ri mansamente de alegria de corpo. Suas pernas delgadas, lisas, os seios pequenos brotaram da água.  Ela mal se conhece, nem cresceu de todo, apenas emergiu da infância. Estende uma perna, olha o pé de longe, move-o terna, lentamente como a uma asa frágil. Ergue os braços acima da cabeça, para o teto perdido na penumbra, os olhos fechados, sem nenhum sentimento, só movimento. O corpo se alonga, se espreguiça, refulge úmido na meia escuridão – é uma linha tensa e trêmula. Quando abandona os braços de novo se condensa, branca e segura. Ri baixinho, move o longo pescoço de um a outro lado, inclina a cabeça para trás [...]. – Ri de novo, em leves murmúrios como os da água.  Alisa a cintura, os quadris, sua vida.
Imerge na banheira como no mar. Um mundo morno se fecha sobre ela silenciosamente, quietamente (LISPECTOR, apud MELO, 2008, p. 14-15).

Todo um processo se desencadeia para sugerir um corpo nascente de mulher. Fundem-se o movimento e o tato, e a moça alisa sua própria vida, numa referência metonímica, significada pelos quadris. A invasão da maré no corpo da moça é uma metáfora do ritual da iniciação para a vida, simbolizando a alegria da puberdade. 
Vislumbra-se a crise da identidade, quando a moça, emergindo da infância, não se reconhece. Essa crise provoca um questionamento progressivo e as sensações de medo e desconforto. É como se o esfriar da água assinalasse o término da infância; e o emergir da banheira, a chegada da puberdade.    
Segundo Sá (2000, P. 169), são inúmeras, inacabadas, as epifanias de beleza nos livros de Clarice Lispector: os cavalos brancos, a pantera, o vento, os amantes, enfim, todos os intervalos da vida que a preenchem e dela transbordam. 
Seus momentos epifânicos não são necessariamente transfigurações do banal em beleza. Muitas vezes, como marca sensível da epifania crítica, surge o enjoo, a náusea. A transfiguração não é radiosa, mas se faz no sentido do mole, do engordurado e demoníaco.
Em Clarice Lispector, existe toda uma gama de epifanias de beleza e visão. Mas também uma outra – de epifanias críticas e corrosivas, epifanias comoventes e das percepções decepcionantes, seguidas de náusea ou tédio: os seios flácidos da tia que a acolhem depois da morte do pai, o professor hipocondríaco rodeado de chinelos e remédios, o marido Otávio, fraco e incapaz de agredir a vida, a barata, massa informe de matéria viva.
Embora não exista em Clarice Lispector nem sequer a menção da palavra epifania, pode-se deduzir de sua ficção toda uma poética do instante, essencialmente ligada à linguagem, enquanto questiona o próprio ato de nomear os seres, o próprio fazer artístico.
Para Lispector, a graça da epifania é uma espécie de graça profana; não o êxtase ou a graça dos santos. É estar perto do coração selvagem, da vida, é captar os instantes ininterruptamente e banhar-se deles e neles.  É atingir o âmago da existência. É sentir-se pleno, borbulhando de vida. 
O estado de graça da epifania não tem a ver com meditação ou religiosidade. Nem com alucinações ou devaneios. Vai muito além daquele sentido pelos santos. Em pleno cotidiano, ela acaba de tomar café e estava simplesmente vivendo ali sentada, com um cigarro queimando no cinzeiro (LISPECTOR, 1994a, p. 94).
Uma das confissões da autora, a respeito de si mesma, é a de ter um estilo humilde, um estilo de busca. Não estariam esses dois polos em constante oposição: o modo de iluminação epifânico, extasiante, glorioso e o estilo humilde, rastrante da antiepifania, feito de repetições, em que o silêncio encobre a personagem, mas não o narrador?
O texto clariceano pode falhar como informação estética, tanto nos seus “clarões” como nos seus “padrões”, ambos, de certo modo, epifânicos. Na sua luta pela expressão, Clarice pode capitular no banal, na repetição diluída, ao nível da mera redundância. Com o intento de repetir-se, ela pode desepifanizar o achado primeiro e a metáfora pode tornar-se banal e lexical. E nas alternâncias entre um estilo brilhante e um estilo pobre, ou na confluência de ambos, que se pode encontrar o seu limite como romancista.
Em A paixão segundo G. H., Clarice Lispector dá voz a um interlocutor fictício dentro da própria ficção.  Desse modo, ela assinala a função fática de Jakobson e desvela a própria estrutura narrativa. Para narrar, é preciso um interlocutor, nem que seja para manter o circuito comunicativo. 
Recorrendo a um interlocutor imaginário, G. H. inicia a narrativa de sua paixão e, com o auxílio desse interlocutor, constrói uma narrativa densa e sua respectiva leitura.
Então, a solução encontrada por G. H. é fingir que escreve para alguém. Mas esse alguém, ao mesmo tempo em que se apresenta como um auxílio, também a ameaça: “Mas receio começar a compor para poder ser entendida pelo alguém imaginário, receio começar a fazer um sentido...” (LISPECTOR, 1994b, p. 15).

          Clarice Lispector não usa a epifania do vocábulo, em si mesmo, não cria palavras-metáforas como Joyce. Seu caminho é próprio. A epifania interior por que passam as diversas personagens de sua escritura corporifica-se na linguagem, na luta com as palavras para dizer dos acontecimentos, experiências, sentimentos, angústias e impossibilidades.


Professor José Fábio Marques de Santana
´Professor de Filosofia e Literatura no Colégio Compacto de Piancó
Professor de Língua Inglesa  na SMEC/São Mamede - PB

ADMOESTAÇÕES DE SÃO FRANCISCO XX

PERMANECER HUMILDE APESAR DOS LOUVORES E HONRAS

1Bem-aventurado o servo que, sendo louvado e exaltado pelos homens, não se considera melhor do que quando é tido por insignificante, simplório e desprezível. 2Porque o homem vale o que é diante de Deus e nada mais.
3Ai do religioso que, enaltecido pelos outros, em sua obstinação não quer mais descer. 4E bem-aventurado o servo que não é por sua vontade enaltecido e que continuamente deseja ser posto debaixo dos pés dos outros.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

ADMOESTAÇÕES DE SÃO FRANCISCO XIX

ENTREGAR AO SENHOR TODO BEM

1Bem-aventurado o servo que entrega todos os seus bens ao Senhor seu Deus; 2porquanto, quem para si retém alguma coisa "esconde o dinheiro do seu amo" (Mt 25,18), e "o que julgava possuir ser-lhe-á tirado" (Lc 8,18).

domingo, 27 de janeiro de 2013

INCÊNDIO EM BOATE



INCÊNDIO PROVA DEZENAS DE MORTES E INÚMEROS FERIDOS


O número de mortos no incêndio que atingiu a boate Kiss em Santa Maria, na Região Central do Rio Grande do Sul, já chega a 180, segundo o major Cleberson Bastianello, comandante do BOE da Brigada Militar. O número total de vítimas ainda é desconhecido e há centenas de feridos sendo atendidos nos hospitais da cidade. A polícia e o Corpo de Bombeiros ainda trabalham no local, checando as circunstâncias do fogo e retirando corpos da área.
"Nós temos 180 corpos aqui. Pessoas foram levadas em óbito ou feridas para os hospitais da região. Mas repito: esse é o número de mortes que temos aqui. Infelizmente poderá aumentar", disse em entrevista coletiva o major Bastianello.
O número de pessoas que estavam na boate ainda não foi confirmado pelos autoridades. A festa reunia estudantes da Universidade Federal de Santa Maria, dos cursos de pedagogia, agronomia, medicina veterinária, zootecnia e dois cursos técnicos.
Todos os hospitais da região estão recebendo as vítimas. São ao menos seis casas de saúde. Voluntários estão auxiliando os trabalhos na cidade. "Estamos mobilizando todo o estado, temos hospitais de diversas regiões se disponibilizando para ajudar. De Canoas, Santo Ângelo, Santa Cruz, enfim. Todos estão colaborando para oferecer o melhor atendimento possível. Os trabalhos são intensos e é preciso uma mobilização muito grande", ressaltou o Secretário Estadual da Saúde, Ciro Simoni, em entrevista à Rádio Gaúcha.

Veja foto da boate antes do incêndio:



FONTE: www.g1.com.br/rs

ADMOESTAÇÕES DE SÃO FRANCISCO XVIII

DA COMPAIXÃO PARA COM O PRÓXIMO

1Bem-aventurado o homem que suporta o seu próximo com suas fraquezas tanto quanto quisera ser suportado por ele se estivesse na mesma situação.

sábado, 26 de janeiro de 2013

CUBA É UM EXEMPLO DE SOLIDARIEDADE

Socorro Gomes:

Cuba é um exemplo de solidariedade para o mundo

Socorro participará da 3ª Conferência Internacional sobre o Equilíbrio do Mundo, que será realizada em Cuba, de 28 a 30 de janeiro. O evento homenageará os 160 anos do nascimento de José Martí, que na definição da pacifista é um herói não só para os cubanos, mas para toda a região por ser um prócer da integração latino-americana. 
“A questão do respeito, da dignidade do homem e da soberania dos povos foi sempre uma grande marca no pensamento de José Martí”, disse. De acordo com ela o fórum será uma oportunidade para aprofundar o conhecimento sobre o herói da independência cubana e debater os problemas dos povos do mundo. “Para nós, é um momento ímpar ter este contato com a história deste pensador e, ao mesmo tempo, estar em Cuba, que é um exemplo de solidariedade para o mundo".
A presidenta do CMP destacou apesar da ilha sofrer há mais de 50 anos com o bloqueio estadunidense, conseguiu vencer grandes desigualdades, o que qualificou de uma inspiração para as outras nações. Ela também ressaltou que Cuba assumirá, na próxima segunda-feira (28), a presidência da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), da qual os Estados Unidos não fazem parte. "Isso é uma vitória do pensamento martiano a integração sob novos paradigmas, sem a presença das potências imperialistas".
Ela também denunciou a política colonialista dos Estados Unidos que, apesar da promessa feita pelo presidente reeleito Barack Obama de fechar a prisão em Guantânamo, pretende mantê-la aberta e também condenou o processo judicial e as sanções impostas para os cinco antiterroristas cubanos.

Cerca de 600 delegados de 43 países estarão presentes no evento. Em coletiva de imprensa, o vice-presidente do Comitê Organizador, Héctor Hernández Pardo, considerou que a ampla participação é uma maneira de reivindicar o valor das ideias e o pensamento no mundo marcado pela crise econômica. 

FONTE: www.vermelho.org.br

ADMOESTAÇÕES DE SÃO FRANCISCO XVII

DO SERVIÇO A DEUS HUMILDE


1"Bem-aventurado o servo" (Mt 24,46) que não se envaidece com o bem que o Senhor diz e opera por meio dele mais do que com o que o Senhor diz e opera por meio de outrem. 2Peca o homem que exige do seu semelhante mais do que ele mesmo daria de si ao Senhor seu Deus.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

A LINGUAGEM CLARICEANA

A MANEIRA DE ESCREVER DE CLARICE LISPECTOR

O processo metalinguístico é a tônica de sua escritura, permeada de questionamentos sobre o ato de escrever. Escreve uma “dura escritura”, como afirma nas páginas de Água Viva, em que formula claramente essa poética do instante:

Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora se tornou um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem o instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa (LISPECTOR, 1994a, p. 13). 

Em uma de suas obras (Paixão segundo G. H.), Lispector usa a linguagem como meio para fugir do que a incomodava, pois é dela que o homem dispõe para sair do eu subjetivo e se elevar ao mundo do outro. É por ela que se assume a dimensão humana, mas também é por meio dele que se mantém afastado do eu verdadeiro, de sua essência. O verdadeiro ser é revelado pela aceitação de seu reverso, o não-ser, e não pela linguagem. 
Ao tentar narrar e transferir sua experiência ao leitor, ela desiste de usar a linguagem, perde sua dimensão humana, identificando-se com todos os seres: apenas um G. e um H. (SÁ, 2000, p. 260). Reconhece que o que experimentou é inenarrável, mas para chegar ao indizível precisou da linguagem, precisou dessa “máscara humana”, precisou realizar “um grande esforço de voz”. A epifania atinge, assim, o seu clímax – de mãos vazias com o que experienciou, G. H. caminha para o silêncio, o não-dito, o indizível da linguagem. Ela quer alguém que lhe segure a mão. A experiência da ruptura pela qual passou e que põe em choque a sua própria identidade, não lhe permitindo ter segurança como sujeito do narrar.
Segundo Sá, a narrativa é uma “metáfora epistemológica” do texto do existir, se usarmos a terminologia de Eco. A narrativa simboliza, no plano da episteme, do conhecimento, “o risco glorioso de uma apaixonada pesquisa existencial no plano da comunicação. O ‘eu’ que precisa do outro; o escritor que não existe sem o público, sem o leitor”.  (SÁ, 2000, p. 205)
Clarice Lispector estabelece uma relação preexistente à sua obra. O surgimento desse arrolamento vai desembocar numa outra interação, que só se torna possível enquanto ampliação da primeira – o envolvimento entre leitor e obra.
Participantes de um mesmo ritual – a criação de uma arte – , esses quatro elementos – autor, leitor, obra e linguagem – trazem todo um poder de reflexão, que somente se realiza diante de um “dizer”. E então, em meio às relações que venham a se estabelecer, um instrumento maior e primeiro precisa aflorar: uma linguagem. 
Em Clarice Lispector, essa consciência de busca, de encontro de uma linguagem, de um modo verdadeiro de escrever, reflete também o outro lado dessa consciência: uma crítica ao que vai escrevendo, num eterno descontentamento de não encontrar as palavras exatas para exprimir seu pensamento, na impotência da palavra e, ao mesmo tempo, na impossibilidade do silêncio. Mas norteia também para a revelação de certo receio com relação ao imprevisível, ao ainda “não-revelado”, que poderá se visualizar:

é o que acontece gradativamente e de uma forma mais intensa que em outras de suas obras, em A hora da estrela: (Escrevo sobre o mínimo parco enfeitando-o com púrpura, jóias e esplendor. É assim que se escreve? Não, não é acumulando e sim desnudando. Mas tenho medo da nudez, pois ela é palavra final). (LISPECTOR, 1998, p. 82)

Uma linguagem que não aceita “correções”, nem “retrocessos”, pois é toda ela tecida no impulso ímpar dos instantes vividos na experiência, e, esses instantes, passados os seus momentos, não admitem retorno: é o autor escrevendo a sua obra à medida que se lê e lê a sua realidade cotidiana:

Eu ainda poderia voltar atrás em retorno aos minutos passados e recomeçar com alegria no ponto em que Macabéa estava de pé na calçada – mas não depende de mim dizer que o homem alourado e estrangeiro a olhasse. É que fui longe demais e já não posso mais retroceder. (...) (LISPECTOR, 1998, p. 80)

Essa é a reflexão do ato de escrever. E, mais ainda, se o ato de escrever se mostra envolvido em outros aspectos inerentes à criação de um romance, por exemplo, podemos encontrar de modo mais direto fora da obra ficcional da autora.  Ao nos dar as indicações do que considera “romance”, o “seu” romance, Clarice Lispector nos deixa bem marcadas as referências que faz ao senso de descoberta, de pesquisa, de uma escritura somente acontecendo no momento em que ela passa a realmente ter um destino:

Bem sei o que é chamado verdadeiro romance.  No entanto, ao lê-lo, com suas tramas de fatos e descrições, sinto-me apenas aborrecida.  E quando escrevo não é o clássico romance.  No entanto, é romance mesmo. Só que o que me guia ao escrevê-lo é sempre um senso de pesquisa e de descoberta.  Não, não de sintaxe pela sintaxe em si, mas de sintaxe o mais possível se aproximando e me aproximando do que estou pensando na hora de escrever.  Aliás, pensando melhor, nunca escolhi linguagem.  O que eu fiz, apenas, foi ir me obedecendo. (...) Vou me seguindo, mesmo sem saber ao que me levará. (...) Embora representando grande risco, só é bom escrever quando ainda não se sabe o que acontecerá. (LISPECTOR, 1975, p. 103-105)

O ato de escrever, o escrever enquanto descoberta. A linguagem, portanto, passa a ser o elemento criador mais forte, mais presente que o escritor, pois este é o produto final, a “obra-prima” de uma linguagem, de uma linguagem criando o escritor.
Ao analisar o romance de estreia da autora (Perto do coração selvagem), vemos com olhos lúcidos a marca principal da obra clariceana: a aventura da linguagem, traduzida em um ritmo de procura, de penetração, que permite uma tensão psicológica poucas vezes alcançada em nossa literatura contemporânea. 
Podemos afirmar que Clarice Lispector procura estender o domínio da palavra sobre regiões mais complexas e mais indizíveis, ou fazer da ficção uma forma de conhecimento do mundo e das ideias.  No dizer de Antonio Cândido, o romance Perto do coração selvagem é uma tentativa de levar a nossa língua canhestra a domínios poucos explorados, forçando-a a adaptar-se a um pensamento cheio de mistério, para o qual sentimos que a ficção é um instrumento real do espírito, capaz de nos fazer penetrar em alguns dos labirintos mais retorcidos da mente.
Lispector, já no seu primeiro romance, colocou seriamente o problema do estilo e da expressão. Sentiu que existe certa densidade afetiva e intelectual que não é possível exprimir se não procurarmos romper os quadros de rotina e criar imagens novas, associações diferentes das comuns e mais profundamente sentidas. As palavras, em Lispector, perdem o seu sentido corrente para se amoldarem a uma expressão sutil e tensa, de tal modo que a língua adquire uma força dramática, um mundo de emoções se descortina, tendo na palavra o seu alvo de interpretação.


Professor José Fábio Marques de Santana
´Professor de Filosofia e Literatura no Colégio Compacto de Piancó
Professor de Língua Inglesa  na SMEC/São Mamede - PB

ADMOESTAÇÕES DE SÃO FRANCISCO XVI

DA PUREZA DE CORAÇÃO

1"Bem-aventurados os puros de coração, porque eles verão a Deus" (Mt 5,8).
2Têm o coração puro os que, desprezando as coisas terrenas, procuram as celestiais e, de coração e espírito puros, não cessam de adorar e de ver sempre o Deus vivo e verdadeiro.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

EROTISMO E EPIFANIA NA LITERATURA

EROTISMO E EPIFANIA, NUMA VISÃO LITERÁRIA E FILOSÓFICA

Erotismo

Etimologicamente erótico provém erótikos (relativo ao amor) e deriva de Eros, o deus do amor dos gregos – Cupido entre os romanos. Mais tarde a psicanálise faz uma mudança no termo e o coloca como um símbolo do desejo, cuja força está na libido. Ele torna-se então o oposto de Tanatos que é o princípio da destruição.
Se pensamos em moldes de dicionário teremos então a conjunção entre erot(o) + ismo que logo significará uma paixão amorosa, amor lúbrico.
Os sentidos, porém, da palavra erótico, não terão seu fim em finitas conclusões de dicionários. Rodeia-se ao contrário, de muitos significados. Significados que, postos em conjunto, são perfeitamente compreendidos e por isso se completam.
Eros é o princípio da ação, da vida. Ele não é o princípio do prazer, mas na verdade ele é o limite do prazer. O princípio do prazer é semelhante ao princípio da realidade, logo o Eros é o limite dessa mesma realidade. Assim, quando juntamos prazer e realidade, encontramos o Eros, pois chegamos ao limite do que da vida esperamos.
Os sujeitos da realidade se inter-relacionam com o prazer e desse mesmo prazer encontram os seus lugares. Esses lugares são marcados pela falta, pela necessidade, pelo desejo, pela busca, barrando assim no limite daquilo que queremos ver e viver, nos papéis de vida, no espetáculo do desejo, no espetáculo erótico.
Na literatura, esse espetáculo de vida, é a montagem textual, nas mais diversas maneiras das relações. O Eros literário é o desejo de encontrar o prazer, de saborear a realidade.
O erotismo literário leva-nos ao prazer de saber, de compreender, de buscar o próprio saber, de saber do prazer. Como paixão, a literatura erótica é expressão da paixão do amor erótico, do amor que é liberação da alma. Pelo Eros da leitura se confere um equilíbrio distinto entre “calor” e “paixão”.
No período clássico, Sócrates e Platão conciliaram aquela tradição religiosa de uma época recuada com as exigências da racionalidade. Um dos diálogos platônicos, neste trabalho já citado, O Fedro, exalta os efeitos benéficos de quatro espécies de loucura consideradas dons divinos: a dos profetas e adivinhos; o entusiasmo, inspirado pelas musas aos poetas; a possessão ritual dionisíaca; e o transporte amoroso, obra de Eros, do qual se ocupou especialmente O banquete, livro neste trabalho também já citado.
Eros trabalha em conjunto com Afrodite; impulsivo, é tanto a fecundidade do corpo quanto a fecundidade do espírito; atraído pela beleza, intensifica-se, expande-se para além do objeto amado, numa ascensão aos mais altos conhecimentos e assegurando a imortalidade. Não há filosofia sem Eros; sem Eros a razão permanece inerte. O amor erótico incorporou ao pensamento os aspectos irracionais da conduta humana, aliviando a carga passiva e perturbadora dos estados afetivos.
Assim, a literatura é e será sempre necessitada de erotismo, uma vez que dela se bebe e se sacia. A literatura é o não-individual colocado e ao mesmo tempo não-plural que se expande no universo do autor assim como também o faz no universo do leitor. O amor erótico apaga as diferenças, ultrapassa as barreiras da individualidade.

Epifania
O conceito de epifania nasce ainda com a idéia religiosa da criada quando da visita dos Reis Magos ao menino Jesus em Belém. No dia 6 de janeiro celebra-se a festa da Epifania ou da Teofania. Originalmente, era a única festa cristã da manifestação de Deus ao mundo na pessoa de Jesus de Nazaré. Incluía a celebração do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, a adoração dos Reis Magos e todos os acontecimentos da infância de Jesus como a Circuncisão, a Apresentação no Templo, assim como o seu Batismo por São João no Rio Jordão. É quase certo que esta festa, como a Páscoa da Ressurreição e Pentecostes se entendia como o cumprimento de uma festa judaica, neste caso, a Festa das Luzes.
A palavra Epifanía significa manifestação. Freqüentemente se refere a esta festa como a Teofanía, tal como se diz nos livros litúrgicos da Igreja Ortodoxa, palavra que significa Manifestação de Deus. A ênfase que se dá a esta festa hoje em dia está na vinda de Jesus como o Messias de Israel e o Filho de Deus, Um da Santíssima Trindade, junto com o Pai e o Espírito Santo.
Assim, em seu batismo por João no Jordão, Jesus se identifica diante dos pecadores como o “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29), o “Bem-Amado” do Pai, cuja tarefa messiânica é a de redimir os seres humanos de seus pecados. (Lc 3, 21; Mc 1, 35) É revelado como um da Santíssima Trindade de quem dá testemunho a voz do Pai e o Espírito Santo em forma de pomba. Os hinos da festa glorificam esta Epifania transcendental, isto é, manifestação.
De acordo com Sá (2000, p. 168) epifania constitui, portanto, uma realidade complexa, perceptível aos sentidos, sobretudo aos olhos (visões), ouvidos (vozes) e até ao tato (Gn 32,24; Jo 20,22). O Antigo Testamento destaca o ouvir, o Novo Testamento, o ver, como nas provas da Ressurreição de Cristo
Sobre epifania Massaud Moisés (apud SÁ,2000, p. 165):

refere-se ao “instante existencial”, em que as personagens clariceanas jogam seus destinos, evidenciando-se “por uma súbita revelação interior que dura um segundo fugaz côo a iluminação instantânea de um farol nas trevas e que, por isso mesmo, recusa ser apreendida pela palavra”.

Nádia B. Gotlib (apud SÁ, 2000, p. 167) diz que “para James Joyce, a epifania é uma espécie ou grau de apreensão do objeto que poderia ser identificada com o objetivo do conto, enquanto uma forma de representação da realidade”.
Ainda nas palavras dessa autora, “em todos os contos cujo núcleo é justamente esta percepção reveladora de uma dada realidade, a teoria torna-se fundamental para a sua leitura. É o caso dos contos de Clarice Lispector, por exemplo” (GOTLIB, apud SÁ, 2000, p. 168)
Em algum momento de nossas vidas, deparamos-nos com algum fator, mesmo que este seja externo, que nos faz ver coisas jamais vistas antes. A partir daí, é impossível retrocedermos. O caminho está percorrido e nada mais ficou como antes. Tudo em nossa volta muda, desde os nossos pensamentos até as nossas atitudes e visões. Essas atitudes nos fazem diferentes, somos outra pessoa. É assim que Olga de Sá aborda em seu livro, A escritura de Clarice Lispector, a epifania – um fator externo que nos transforma internamente.
A epifania pode ser comparada ao estágio da maternidade. A partir do momento em que uma mulher se torna mãe, tudo muda, nada pode voltar a ser como antes. O caminho até aqui traçado era um, a partir de agora uma nova visão do mundo será experimentada. Segundo Sá,
Depois tudo se dissolve sob nossos passos. Aquele momento, porém, adquiriu um valor, uma realidade, e a experiência torna-se fim de si mesma. É um momento de êxtase, que gostaríamos de prender entre os dedos. Vistos sob uma luz instantânea e nova, podemos tentar fixar tintas e cores estranhas, odores delicados ou as feições de um ser amado. (SÁ, 2000, p. 170)

De acordo com Sá (2000), as acepções religiosa e mística do termo epifania são importantes, porque têm reflexos no sentido literário, concretamente, no uso que desses processos fez Clarice Lispector. 
Em 1970, Massaud Moisés, sem usar o termo epifania, ligando-se, contudo, aos pareceres críticos de Benedito Nunes (1969) e Luís Costa Lima (1966), refere-se ao “instante existencial”, em que as personagens clariceanas jogam seus destinos, evidenciando-se por uma súbita revelação interior que dura um segundo fugaz, como a iluminação instantânea de um farol nas trevas e que, por isso mesmo, recusa ser apreendida pela palavra. 
Esse “momento privilegiado” não precisa ser “excepcional” ou “chocante”: basta que seja “revelador, definitivo, determinante”.  Atinge, assim, a escritora o cerne de todo ficcionista: o momento da lucidez plena, em que o ser descortina a realidade íntima das coisas e de si próprio.
As personagens clariceanas estão mergulhadas no mundo cotidiano e, a partir da percepção, são levadas a uma realidade outra.   Tal momento é conceituado por alguns críticos como “Momento epifânico” da personagem.
A narrativa, segundo Romano de Sant’Anna, seria essa constante alusão, esse reflexo de uma verdade impossível de ser configurada, não obstante insistentemente projetada aos olhos ávidos de uma visão epifânica. A epifania mostra-se, então, como o momento de exceção através do qual o indivíduo tem uma noção do que poderia ver e ter, semelhante à posição do próprio narrador diante da coisa que narra, ou do narrador diante da linguagem.
O termo, epifania, aplicado à literatura, significa o relato de uma experiência que, a princípio, mostra-se simples e rotineira, mas acaba por apontar toda a força de uma inusitada revelação. É a percepção de uma realidade atordoante, quando os objetos mais simples, os gestos mais banais e as situações mais cotidianas comportam iluminação súbita na consciência dos indivíduos, e a grandiosidade do êxtase pouco tem a ver com o elemento prosaico em que se inscreve a personagem. 
Em literatura, epifania pode ser não apenas o relato de uma experiência, mas uma obra ou parte de uma obra em que se narra o episódio da revelação, em que a consciência se abre para o mundo em momentos luminosos.


Professor José Fábio Marques de Santana
´Professor de Filosofia e Literatura no Colégio Compacto de Piancó
Professor de Língua Inglesa  na SMEC/São Mamede - PB