ANÁLISE DO CONTO MISS ALGRAVE, DA OBRA "VIA CRUCIS DO CORPO", DE CLARICE LISPECTOR
Em
um de seus depoimentos, Clarice Lispector diz: “Meus livros, felizmente para
mim, não são superlotados de fatos, e sim, da repercussão dos fatos nos
indivíduos” (LISPECTOR, apud BORELLI,
1981, p. 28). Nesse sentido, nosso objetivo nesta análise é o de mostrar como
tal repercussão aparece em sua obra, especificamente, em um conto — “Miss Algrave”.
O
conto retrata a história de uma mulher pudica (personagem Ruth Algrave), que se
reprime e vê em tudo algum tipo de pecado. Em sua alimentação, não come carne;
em sua higiene, ao tomar banho, não se despe; não vê TV, pois acha o que é
mostrado obsceno — um homem e uma mulher se beijando, por exemplo. Para ela,
ser uma “datilógrafa perfeita”, tomar o seu chá, alimentar os pombos de sua
janela, visitar velhinhas é o que lhe parece felicidade.
Em
uma visita que recebe Ruth Algrave, visita de alguém não visto, a felicidade é
sentida, isto é, ela conhece o que é viver. Após experimentar o gozo, percebe
que, aquilo que anteriormente considerava pecado, agora, constitui-se no prazer
da vida. O lençol manchado de sangue é o troféu disso. A carne, antes
abominada, passa a ser devorada
com sangue; o vinho é degustado com prazer; além disso, resolve não ser mais a
“datilógrafa perfeita”.
Sente saudade do que a
proporcionou sentir o gozo, Ixtlan, e, para saciá-la, “convida” um homem no
Picadilly Circle (a história se passa em Londres) para “acompanhá-la” ao seu
apartamento. Ela usa seu dinheiro para comprar um vestido vermelho bem
decotado. Pensa convidar seu chefe para “deitar-se” com ela e tem a certeza de
que ele aceitará, já que ele vive com uma mulher insignificante, retrato do que
ela, Miss Algrave, foi.
Retomando o depoimento dado
por Lispector a Borelli, observamos que Ruth Algrave é uma personagem exemplar
disso a que o depoimento se refere. A personagem consegue, por meio da oposição
“essência” X “aparência”, fazer com que a essência venha à tona e que a
aparência seja lateralizada. Isso se dá porque a personagem reage aos fatos que
lhe acontecem.
Percebe-se então que a idéia
da paixão enquanto sofrimento, enquanto padecimento está nessa personagem
embutida. Miss Algrave padece o não conhecimento, padece a incerteza do
ser-no-mundo. Esse padecimento, essa paixão necessária é a porta para o
erotismo, erotismo que de certo modo empurra a personagem para o processo
epifânico, para o descobrimento de si mesma e, por isso, a manifestação ao
mundo.
A construção da personagem
permite que ela possa ter tal reação diante de tudo o que ocorre com ela, de
modo a provocar mudanças em sua vida. Prova disso é a carne, antes abominada,
agora comida com sangue, isto é, a aparência cedeu à essência. “Então, no
Domingo, na hora do almoço, comeu filet mignon com purê de batata. A carne
sangrenta era ótima. E tomou vinho tinto italiano”. (LISPECTOR, 1998, p. 22)
Essa mudança caracteriza,
possivelmente, o que Clarice Lispector entenda como “repercussão dos fatos nos
indivíduos”. Dessa forma, Miss Algrave representa, com bastante propriedade, o
existencialismo clariceano, que Coelho (apud
BORELLI, 1981 p. 182) diz ser
a denúncia da superficialidade estéril
da vida que aprisiona os indivíduos na rotina cotidiana, e a intuição ainda
confusa de que haveria algo grandioso a ser descoberto para além das formas
vulgares da vida — a verdadeira vida criativa que levaria os seres humanos à
autodescoberta e à plenitude de existir”.
No conto, Miss Algrave protesta a todo instante e de toda
maneira contra aquilo que ela julga imoral: o sexo. Na solidão de sua vida
mesquinha e fútil, lembranças de suas primeiras manifestações sexuais a atormentam.
Tudo corria, normalmente com Ruth Algrave, descendente de irlandeses, vivia
para o
trabalho;
era uma datilógrafa perfeita. Seu chefe nunca olhava para ela e tratava-a,
felizmente, com respeito, chamando-a de Miss Algrave. Esses dados, são
particularmente interessantes, pois fazem menção a uma personagem que será
criada posteriormente por Lispector no livro A hora da estrela. Pois
bem, se observarmos, atentamente, Ruth Algrave apresenta indícios da nordestina
Macabéia. A personagem em questão é uma datilógrafa “estrangeira” numa cidade grande,
ansiosa por encontrar alguém que a auxilie a romper as barreiras que traz em
si. Logo de início, a narrativa nos aponta um problema: a solidão e a monotonia
na qual vivia a mulher. Ela que, embora fosse possuidora de um corpo bonito, era
virgem, ninguém a olhava; nem “nunca ninguém havia tocado nos seus seios.” (LISPECTOR,
1998, p.14) Ao que parece, esse é o grande problema, a personagem, cuja idade
desconhecemos, mas ao que indica se encontra em meia idade, ainda não experienciou
uma troca afetiva maior. Por isso, se fechara, ficando as lembranças a
atormentá-la: “[...] quando era pequena, com uns sete anos de idade, brincava
de marido e mulher com seu primo Jack, na cama grande da vovó. E ambos faziam
tudo para ter filhinhos sem conseguir. Nunca mais vira Jack nem queria vê-lo.
Se era culpada, ele também o era.” (LISPECTOR, 1998, p.13)
Pelo que se observa, a personagem carrega um sentimento
de culpa que advém, entre outros fatores,
de um processo de repressão, que, conforme Chauí (2008, p. 49), foi responsável
pela idéia da sexualidade como pecaminosa, imoral e viciosa. Segundo a autora,
herdamos da cultura judaica cristã uma visão extremamente repressora da
sexualidade, mais acentuadamente marcada, como sempre, para o contingente
feminino. Nossas raízes culturais estão impregnadas de uma visão distorcida da
sexualidade, onde a prática da repressão é o comportamento usual, ao menos para
as mulheres, quando não também para os homens. Embora nossa civilização tenha,
nos últimos séculos, vivido alguns momentos de maior liberalidade, essa visão
distorcida da sexualidade foi a tônica principal, mantida durante todos esses
séculos em que ela vem se cristalizando. Diga-se de passagem que, mesmo em seus
momentos de mais liberdade, o exercício pleno da sexualidade sempre foi
apanágio das pessoas adultas, que vêem com maus olhos a sexualidade dos
adolescentes, ridicularizam as manifestações sexuais da terceira idade e negam
- ao menos negaram até há poucas décadas - a sexualidade na infância. Esse paradigma
de comportamento se faz sentir pelas mulheres construídas ao longo da produção
literária de Lispector e outras mulheres da literatura brasileira. Nesse
contexto, a mulher sente-se “desorientada” em relação a sua libido, aos desejos
inerentes de seu corpo. Pensamos que advém desse fato o comportamento da
personagem do conto em questão. É isso que faz Ruth Algrave manifestar um
sentimento de repulsa com relação à sua sexualidade, fazendo-a até renegar seu
próprio corpo e fechar os olhos aos casais que se beijavam ao seu redor, quando
estava no Hyde Park . Não permitia a si os prazeres da carne, literalmente,
(sequer comia carne). Não ousava olhar para não enxergar nada de ordem sexual,
não se aproximava daquilo que poderia lhe causar prazer. Negava a sexualidade
alheia, mais ainda, a sua própria, pois não conseguia olhar para seu próprio
corpo. E encontro erótico começa com a visão do corpo desejado. Vestido ou
desnudo, o corpo é uma presença, uma forma que, por um instante, é todas as
formas do mundo. Por isso, a mulher do conto em análise procura fechar os olhos
perante o corpo, pois sabe que percebê-lo, tocá-lo é abrir-se para fantasias e afastar-se
do cotidiano. “Tomava banho só uma vez por semana, no sábado. Para não ver o
seu corpo nu, não tirava nem as calcinhas nem o sutiã.” (LISPECTOR, 1998, p.14)
Por esse trecho pode-se arriscar uma possível leitura freudiana da sexualidade:
teria Ruth Algrave sofrido algum trauma em relação a sua sexualidade? Em “O mal-estar
na civilização”, Freud aponta o papel desempenhado pelo amor na origem da consciência
e a inevitabilidade do sentimento de culpa. Conforme o cientista a civilização
impõe ao indivíduo certas normas que regula o seu desejo, gerando assim um
conflito. Assim, o conflito passa a existir assim que os homens decidem viver
juntos e enquanto a comunidade não assume outra forma que não a família, o
conflito (eros X instinto de morte) se expressa no complexo edipiano, estabelece
a consciência e cria o primeiro sentimento de culpa.
Conhecemos, assim, duas
origens do sentimento de culpa: uma que surge do medo de uma autoridade, e
outra, posterior, que surge do medo do superego. A primeira insiste numa
renúncia às satisfações instintivas; a segunda, ao mesmo tempo em que faz isso,
exige punição, de uma vez que a continuação dos desejos proibidos não pode ser
escondida do superego. [...] em primeiro lugar, vem a renúncia ao instinto,
devido ao medo de agressão por parte da autoridade externa. (é a isso, naturalmente,
que o medo da perda do amor equivale, pois o amor constitui proteção contra
essa agressão punitiva.) Depois, vem a organização de uma autoridade interna
e a renúncia ao instinto devido ao medo dela, ou seja, devido ao medo da
consciência. (FREUD, 1997, p. 100, os grifos são do autor)
O sentimento de repulsa, manifestado por Ruth Algrave e
pelas personagens dos outros textos reunidos nesse livro, parece remeter aos
dois aspectos de uma vivência culposa. Visto que, para Freud, o sentimento de
culpa remete a duas origens, mas estas estão sempre relacionadas para o campo
de estudo da consciência social, para a busca de entendimento de como os seres
humanos na sua relação com o mundo social e natural, apreendem esses mundos e a
si mesmos, enquanto seres pensantes. Eis a razão pela qual Ruth Algrave manifesta
seu repúdio: “lamentava muito ter nascido da incontinência de seu pai e de sua
mãe, sentia pudor deles não terem tido pudor.” (LISPECTOR, 1998, p. 16-17) Ela,
então, cria uma situação imaginária para sua felicidade; imagina-se sendo
deflorada por um ser de outro planeta, Ixtlan, vindo de Saturno.
Foi então que aconteceu.
Sentiu que pela janela
entrava uma coisa que não era um pombo. Teve medo. Falou bem alto:
- Quem é:
E a resposta veio em forma
de vento:
- Eu sou um eu.
[...] - vim de Saturno para amar
você.
- Mas eu não estou vendo
ninguém! Gritou.
E sentia-o mesmo. Teve um frisson
eletrônico.
A partir desse ponto, pode-se perceber, duas faces do
erotismo sendo despontada a partir do desenvolvimento da atitude da personagem.
O erotismo encarna duas
figuras emblemáticas: a do religioso solitário e a do
libertino. Emblemas opostos,
mas unidos no mesmo movimento, ambos negam a reprodução e são tentativas de
salvação ou libertação pessoal diante de um mundo caído, perverso, incoerente
ou irreal. (PAZ, apud COELHO 1983, p.
187).
Vê-se, pois que algo semelhante ocorre com Miss Algrave,
de moça recatada, que repudia o sexo, passa a um comportamento inverso: a
prostituta.
Nesse sentido, se pode compreender, que as personagens
clariceanas, não encontrando no outro uma possibilidade de preenchimento de seu
vazio, buscam a felicidade com o desconhecido, aspecto defendido pelos místicos
cabalistas. Assim, pode-se afirmar que o processo de reversão da personagem
brota da experiência mística. A personagem busca o amor pleno, no entanto, os
limites impostos pela castração a impedem de encontrá-lo, o que a faz buscar um
gozo para além do fálico.
O gozo é advindo do Eros, ele como porta mágica para o
mundo novo, irreal para os outros, porém real para aqueles que o querem e o
buscam. Para tudo isso incorre paixão, padecimento. Miss Algrave vive um gozo
que só existiu após o padecimento, ela conhece a si após conhecer o seu corpo.
Eis então a ligação entre paixão e erotismo.
A experiência mística passa, em primeiro lugar, pela
experiência da dor, uma aflição no corpo, é o que ocorre com a mulher em
questão. Sobre esse aspecto, é importante comentar que, nesse livro e,
especialmente, nesse conto, Lispector, organiza um discurso, sobre o erotismo,
numa espécie de jogo de paradoxos, em que - o desejo carnal de suas personagens
ganha certa transcendência ao mesmo tempo em que é demasiadamente mundano - o
ato sexual se transforma num ritual sagrado, em que a Divindade é o estrangeiro
por excelência. Esse jogo entre sagrado e profano permeia a maioria de seus
contos eróticos. Pode-se, então, falar em um Eros divino, um sexo místico pelo
qual um Ser misterioso penetra, radicalmente, no corpo e na alma. Nesse
contexto, o gozo de Ruth Algrave é altamente erótico no sentido divino. Ela
constrói esse novo sexo místico. No caso da alma humana feminina, trata-se de
um gozo e uma dor ao mesmo tempo. Como até então não ocorrera o gozo carnal,
ocorre agora em outro plano, remetendo a uma relação com a divindade. “Deus
iluminava seu corpo”. (LISPECTOR, 1998, p.18)
Eles se entendiam em
sânscrito. Seu contato era frio como o de uma lagartixa. Dava-lhe calafrios.
Ixtlan tinha sobre a cabeça uma coroa de cobras entrelaçadas, mansas pelo
terror de poder morrer. O manto que cobria o seu corpo era da mais sofrida cor
roxa, era ouro mau e púrpura coagulada. Ele disse: - Tire a roupa. Ela tirou a
camisola. A lua estava enorme dentro do quarto. Ixtlan era branco e pequeno.
Deitou-se ao seu lado na cama de ferro. E passou a mão pelos seus seios. Rosas
negras. Ela nunca tinha sentido o que sentiu. Era bom demais Tinha medo que
acabasse. Era como se um aleijado jogasse no ar o seu cajado. (LISPECTOR, 1998,
p.16-17)
Vê-se, pela descrição do narrador, que se trata da
“experiência interior”. Ao que se sabe, a experiência interior é um tipo de
sentimento que não isola a matéria, não exclui o corpo. A experiência interior procura
o êxtase, sem a exclusão do corpo e termina por afirmá-lo como lugar
receptáculo do gozo. No corpo – o erotismo – o orgasmo é algo que não pode ser
cercado pela razão, é algo que está completamente fora de toda apreensão e
conhecimento – é um estado que está fora-de, é o êxtase.
Nesse livro, o grande personagem é o corpo feminino,
depositário do desejo. Clarice mostra, por meio de uma linguagem recheada de
simbologia, o conflito por que passa as mulheres em ter de esconder e, até
mesmo, negar àquilo que lhe é inato: sua sexualidade. O leitor, por meio dessa personagem,
assiste a impossibilidade de fazer calar o corpo desejante. Assim, dentre
outros aspectos, a repressão é o processo que perdura no comportamento das
personagens desse livro. Clarice, nessa obra, vem tratando desse tema, o da
sexualidade reprimida, o da homossexualidade feminina, temas desconfortantes e
pouco lidados em literatura. Constrói, para isso, figuras femininas para
desenvolverem esse discurso. Percebe-se, nessa narrativa, a ocorrência de um processo
de liberação. No início da história vemos a figura feminina numa posição
desconfortante, no final ocorre uma libertação. As mulheres resolvem agir,
tomar uma atitude que as tire da situação de opressão. A verdade é que elas
tomam a decisão de serem felizes, mesmo que isso signifique ir contra as
regras, as normas e conceitos - ou preconceitos - vigentes e respeitados. Esse é
o território em que a escritura de Clarice se desenha: no “litoral” entre o ser
e o dizer. Convém lembrar daquilo que orienta a psicanálise: o homem em sua
incompletude assume um caráter irreparável e paradoxal. Entenda-se que, por
estar submetido às leis da linguagem, que escamoteam a realidade, o homem está
alienado do seu ser; e, sendo assim, requer sempre algo que o complete, que o
represente. Observa-se, que o que incita, o desejo é o que está oculto, a
partir do momento em que se expõe há uma vulgarização, ocorre a “morte” da
libido. Se o sexo é reprimido o simples fato de falar dele, ou seja, a abertura
constituísse uma transgressão. Remete, também, ao preceito de Barthes sobre o
gozo. Salienta o filósofo francês que a abertura não é erótica e, sim a
intermitência.
O lugar mais erótico de um
corpo não é lá onde o vestuário se entreabre? Na perversão (que é o regime do
prazer textual) não há ‘zonas erógenas’ expressão aliás bastante importuna): é
a intermitência como o disse muito bem a psicanálise, que é erótica: a da pele
que cintila entre duas peças (as calças e a malha), entre duas bordas ( a
camisa entreaberta, a luva e a manga); é essa cintilação mesma que seduz, ou
ainda: a encenação de um aparecimento-desaparecimento. (BARTHES, 1996, p. 17)
Assim,
Clarice parece querer nos mostrar que o desejo feminino não passa somente pela questão
da liberdade sexual. Suas personagens não procuram apenas a satisfação da
carne, a materialização do desejo e sim buscam uma experiência do espírito que
é o caminho da plenitude. Daí o retorno à carência, à incessante busca, à
consciência do “impossível”, ou à consciência da morte, como lugar da superação
de descontinuidade. Sua arte literária traz à tona uma dor existencial,
secreta, dilacerante, às vezes carregada também, de ironia. Outras vezes
brinda-nos com toque de humor. Na verdade sua literatura revela uma intensa
paixão pela vida.
Professor José Fábio Marques de Santana
´Professor de Filosofia e Literatura no Colégio Compacto de Piancó
Professor de Língua Inglesa na SMEC/São Mamede - PB