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Patos, PB, Brazil
Professor de Filosofia e Literatura na Rede Privada de Ensino desde 2003 (Colégio Compacto); professor de Língua Inglesa no Município de São Mamede (CENEC); Militante Sindicalista ligado ao SINFEMP (Patos e São Mamede); Diretor Estadual de Imprensa e Divulgação da CTB/PB

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

A LINGUAGEM CLARICEANA

A MANEIRA DE ESCREVER DE CLARICE LISPECTOR

O processo metalinguístico é a tônica de sua escritura, permeada de questionamentos sobre o ato de escrever. Escreve uma “dura escritura”, como afirma nas páginas de Água Viva, em que formula claramente essa poética do instante:

Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora se tornou um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem o instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa (LISPECTOR, 1994a, p. 13). 

Em uma de suas obras (Paixão segundo G. H.), Lispector usa a linguagem como meio para fugir do que a incomodava, pois é dela que o homem dispõe para sair do eu subjetivo e se elevar ao mundo do outro. É por ela que se assume a dimensão humana, mas também é por meio dele que se mantém afastado do eu verdadeiro, de sua essência. O verdadeiro ser é revelado pela aceitação de seu reverso, o não-ser, e não pela linguagem. 
Ao tentar narrar e transferir sua experiência ao leitor, ela desiste de usar a linguagem, perde sua dimensão humana, identificando-se com todos os seres: apenas um G. e um H. (SÁ, 2000, p. 260). Reconhece que o que experimentou é inenarrável, mas para chegar ao indizível precisou da linguagem, precisou dessa “máscara humana”, precisou realizar “um grande esforço de voz”. A epifania atinge, assim, o seu clímax – de mãos vazias com o que experienciou, G. H. caminha para o silêncio, o não-dito, o indizível da linguagem. Ela quer alguém que lhe segure a mão. A experiência da ruptura pela qual passou e que põe em choque a sua própria identidade, não lhe permitindo ter segurança como sujeito do narrar.
Segundo Sá, a narrativa é uma “metáfora epistemológica” do texto do existir, se usarmos a terminologia de Eco. A narrativa simboliza, no plano da episteme, do conhecimento, “o risco glorioso de uma apaixonada pesquisa existencial no plano da comunicação. O ‘eu’ que precisa do outro; o escritor que não existe sem o público, sem o leitor”.  (SÁ, 2000, p. 205)
Clarice Lispector estabelece uma relação preexistente à sua obra. O surgimento desse arrolamento vai desembocar numa outra interação, que só se torna possível enquanto ampliação da primeira – o envolvimento entre leitor e obra.
Participantes de um mesmo ritual – a criação de uma arte – , esses quatro elementos – autor, leitor, obra e linguagem – trazem todo um poder de reflexão, que somente se realiza diante de um “dizer”. E então, em meio às relações que venham a se estabelecer, um instrumento maior e primeiro precisa aflorar: uma linguagem. 
Em Clarice Lispector, essa consciência de busca, de encontro de uma linguagem, de um modo verdadeiro de escrever, reflete também o outro lado dessa consciência: uma crítica ao que vai escrevendo, num eterno descontentamento de não encontrar as palavras exatas para exprimir seu pensamento, na impotência da palavra e, ao mesmo tempo, na impossibilidade do silêncio. Mas norteia também para a revelação de certo receio com relação ao imprevisível, ao ainda “não-revelado”, que poderá se visualizar:

é o que acontece gradativamente e de uma forma mais intensa que em outras de suas obras, em A hora da estrela: (Escrevo sobre o mínimo parco enfeitando-o com púrpura, jóias e esplendor. É assim que se escreve? Não, não é acumulando e sim desnudando. Mas tenho medo da nudez, pois ela é palavra final). (LISPECTOR, 1998, p. 82)

Uma linguagem que não aceita “correções”, nem “retrocessos”, pois é toda ela tecida no impulso ímpar dos instantes vividos na experiência, e, esses instantes, passados os seus momentos, não admitem retorno: é o autor escrevendo a sua obra à medida que se lê e lê a sua realidade cotidiana:

Eu ainda poderia voltar atrás em retorno aos minutos passados e recomeçar com alegria no ponto em que Macabéa estava de pé na calçada – mas não depende de mim dizer que o homem alourado e estrangeiro a olhasse. É que fui longe demais e já não posso mais retroceder. (...) (LISPECTOR, 1998, p. 80)

Essa é a reflexão do ato de escrever. E, mais ainda, se o ato de escrever se mostra envolvido em outros aspectos inerentes à criação de um romance, por exemplo, podemos encontrar de modo mais direto fora da obra ficcional da autora.  Ao nos dar as indicações do que considera “romance”, o “seu” romance, Clarice Lispector nos deixa bem marcadas as referências que faz ao senso de descoberta, de pesquisa, de uma escritura somente acontecendo no momento em que ela passa a realmente ter um destino:

Bem sei o que é chamado verdadeiro romance.  No entanto, ao lê-lo, com suas tramas de fatos e descrições, sinto-me apenas aborrecida.  E quando escrevo não é o clássico romance.  No entanto, é romance mesmo. Só que o que me guia ao escrevê-lo é sempre um senso de pesquisa e de descoberta.  Não, não de sintaxe pela sintaxe em si, mas de sintaxe o mais possível se aproximando e me aproximando do que estou pensando na hora de escrever.  Aliás, pensando melhor, nunca escolhi linguagem.  O que eu fiz, apenas, foi ir me obedecendo. (...) Vou me seguindo, mesmo sem saber ao que me levará. (...) Embora representando grande risco, só é bom escrever quando ainda não se sabe o que acontecerá. (LISPECTOR, 1975, p. 103-105)

O ato de escrever, o escrever enquanto descoberta. A linguagem, portanto, passa a ser o elemento criador mais forte, mais presente que o escritor, pois este é o produto final, a “obra-prima” de uma linguagem, de uma linguagem criando o escritor.
Ao analisar o romance de estreia da autora (Perto do coração selvagem), vemos com olhos lúcidos a marca principal da obra clariceana: a aventura da linguagem, traduzida em um ritmo de procura, de penetração, que permite uma tensão psicológica poucas vezes alcançada em nossa literatura contemporânea. 
Podemos afirmar que Clarice Lispector procura estender o domínio da palavra sobre regiões mais complexas e mais indizíveis, ou fazer da ficção uma forma de conhecimento do mundo e das ideias.  No dizer de Antonio Cândido, o romance Perto do coração selvagem é uma tentativa de levar a nossa língua canhestra a domínios poucos explorados, forçando-a a adaptar-se a um pensamento cheio de mistério, para o qual sentimos que a ficção é um instrumento real do espírito, capaz de nos fazer penetrar em alguns dos labirintos mais retorcidos da mente.
Lispector, já no seu primeiro romance, colocou seriamente o problema do estilo e da expressão. Sentiu que existe certa densidade afetiva e intelectual que não é possível exprimir se não procurarmos romper os quadros de rotina e criar imagens novas, associações diferentes das comuns e mais profundamente sentidas. As palavras, em Lispector, perdem o seu sentido corrente para se amoldarem a uma expressão sutil e tensa, de tal modo que a língua adquire uma força dramática, um mundo de emoções se descortina, tendo na palavra o seu alvo de interpretação.


Professor José Fábio Marques de Santana
´Professor de Filosofia e Literatura no Colégio Compacto de Piancó
Professor de Língua Inglesa  na SMEC/São Mamede - PB

Um comentário:

Anônimo disse...

Que texto maravilhoso! Obrigada, professor!