A MANEIRA DE ESCREVER DE CLARICE LISPECTOR
O
processo metalinguístico é a tônica de sua escritura, permeada de
questionamentos sobre o ato de escrever. Escreve uma “dura escritura”, como
afirma nas páginas de Água Viva, em
que formula claramente essa poética do instante:
Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do
instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora se tornou um novo
instante-já que também não é mais. Cada coisa tem o instante em que ela é.
Quero apossar-me do é da coisa (LISPECTOR, 1994a, p. 13).
Em
uma de suas obras (Paixão segundo G. H.), Lispector usa a linguagem como meio
para fugir do que a incomodava, pois é dela que o homem dispõe para sair do eu
subjetivo e se elevar ao mundo do outro. É por ela que se assume a dimensão
humana, mas também é por meio dele que se mantém afastado do eu verdadeiro, de
sua essência. O verdadeiro ser é revelado pela aceitação de seu reverso, o
não-ser, e não pela linguagem.
Ao
tentar narrar e transferir sua experiência ao leitor, ela desiste de usar a
linguagem, perde sua dimensão humana, identificando-se com todos os seres:
apenas um G. e um H. (SÁ, 2000, p. 260). Reconhece que o que experimentou é
inenarrável, mas para chegar ao indizível precisou da linguagem, precisou dessa
“máscara humana”, precisou realizar “um grande esforço de voz”. A epifania
atinge, assim, o seu clímax – de mãos vazias com o que experienciou, G. H.
caminha para o silêncio, o não-dito, o indizível da linguagem. Ela quer alguém
que lhe segure a mão. A experiência da ruptura pela qual passou e que põe em
choque a sua própria identidade, não lhe permitindo ter segurança como sujeito
do narrar.
Segundo
Sá, a narrativa é uma “metáfora epistemológica” do texto do existir, se usarmos
a terminologia de Eco. A narrativa simboliza, no plano da episteme, do
conhecimento, “o risco glorioso de uma apaixonada pesquisa existencial no plano
da comunicação. O ‘eu’ que precisa do outro; o escritor que não existe sem o
público, sem o leitor”. (SÁ, 2000, p. 205)
Clarice
Lispector estabelece
uma relação preexistente à sua obra. O surgimento desse arrolamento vai
desembocar numa outra interação, que só se torna possível enquanto ampliação da
primeira – o envolvimento entre leitor e obra.
Participantes de um mesmo ritual – a
criação de uma arte – , esses quatro elementos – autor, leitor, obra e
linguagem – trazem todo um poder de reflexão, que somente se realiza diante de
um “dizer”. E então, em meio às relações que venham a se estabelecer, um
instrumento maior e primeiro precisa aflorar: uma linguagem.
é o que acontece
gradativamente e de uma forma mais intensa que em outras de suas obras, em A
hora da estrela: (Escrevo sobre o mínimo parco enfeitando-o com púrpura, jóias
e esplendor. É assim que se escreve? Não, não é acumulando e sim desnudando.
Mas tenho medo da nudez, pois ela é palavra final). (LISPECTOR, 1998, p. 82)
Uma linguagem que não aceita
“correções”, nem “retrocessos”, pois é toda ela tecida no impulso ímpar dos
instantes vividos na experiência, e, esses instantes, passados os seus
momentos, não admitem retorno: é o autor escrevendo a sua obra à medida que se
lê e lê a sua realidade cotidiana:
Eu ainda poderia
voltar atrás em retorno aos minutos passados e recomeçar com alegria no ponto em que Macabéa estava de
pé na calçada – mas não depende de mim dizer que o homem alourado e estrangeiro
a olhasse. É que fui longe demais e já não posso mais retroceder. (...)
(LISPECTOR, 1998, p. 80)
Essa é a reflexão do ato de escrever.
E, mais ainda, se o ato de escrever se mostra envolvido em outros aspectos
inerentes à criação de um romance, por exemplo, podemos encontrar de modo mais
direto fora da obra ficcional da autora.
Ao nos dar as indicações do que considera “romance”, o “seu” romance,
Clarice Lispector nos deixa bem marcadas as referências que faz ao senso de
descoberta, de pesquisa, de uma escritura somente acontecendo no momento em que
ela passa a realmente ter um destino:
Bem sei o que é
chamado verdadeiro romance. No entanto,
ao lê-lo, com suas tramas de fatos e descrições, sinto-me apenas
aborrecida. E quando escrevo não é o
clássico romance. No entanto, é romance
mesmo. Só que o que me guia ao escrevê-lo é sempre um senso de pesquisa e de
descoberta. Não, não de sintaxe pela
sintaxe em si, mas de sintaxe o mais possível se aproximando e me aproximando
do que estou pensando na hora de escrever.
Aliás, pensando melhor, nunca escolhi linguagem. O que eu fiz, apenas, foi ir me obedecendo. (...)
Vou me seguindo, mesmo sem saber ao que me levará. (...) Embora representando
grande risco, só é bom escrever quando ainda não se sabe o que acontecerá.
(LISPECTOR, 1975, p. 103-105)
O
ato de escrever, o escrever enquanto descoberta. A linguagem, portanto, passa a
ser o elemento criador mais forte, mais presente que o escritor, pois este é o
produto final, a “obra-prima” de uma linguagem, de uma linguagem criando o
escritor.
Ao analisar o romance de estreia da
autora (Perto do coração selvagem), vemos
com olhos lúcidos a marca principal da obra clariceana: a aventura da linguagem,
traduzida em um ritmo de procura, de penetração, que permite uma tensão
psicológica poucas vezes alcançada em nossa literatura contemporânea.
Podemos afirmar que Clarice Lispector
procura estender o domínio da palavra sobre regiões mais complexas e mais
indizíveis, ou fazer da ficção uma forma de conhecimento do mundo e das
ideias. No dizer de Antonio Cândido, o
romance Perto do coração selvagem é
uma tentativa de levar a nossa língua canhestra a domínios poucos explorados,
forçando-a a adaptar-se a um pensamento cheio de mistério, para o qual sentimos
que a ficção é um instrumento real do espírito, capaz de nos fazer penetrar em
alguns dos labirintos mais retorcidos da mente.
Lispector,
já no seu primeiro romance, colocou seriamente o problema do estilo e da
expressão. Sentiu que existe certa densidade afetiva e intelectual que não é
possível exprimir se não procurarmos romper os quadros de rotina e criar
imagens novas, associações diferentes das comuns e mais profundamente sentidas.
As palavras, em Lispector, perdem o seu sentido corrente para se amoldarem a
uma expressão sutil e tensa, de tal modo que a língua adquire uma força
dramática, um mundo de emoções se descortina, tendo na palavra o seu alvo de
interpretação.
Professor José Fábio Marques de Santana
´Professor de Filosofia e Literatura no Colégio Compacto de Piancó
Professor de Língua Inglesa na SMEC/São Mamede - PB
Um comentário:
Que texto maravilhoso! Obrigada, professor!
Postar um comentário