EPIFANIA CLARICEANA
O
título do primeiro livro de Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem, inspira-se em Joyce. A epígrafe dessa
obra, publicada em 1944, é retirada do Retrato
do artista quando jovem e diz textualmente: “Ele estava só. Estava
abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida” (LISPECTOR, apud MELO, 2008, p. 13).
O
texto precede uma das mais características epifânicas de Joyce, traduzida num
longo trecho em que se faz presente o prazer da leitura. Elementos epifânicos
fundamentais estão aí presentes, desde o seu começo: a visão transfigurada, o
deslumbramento da beleza mortal, a contemplação, o silêncio sagrado, o som dos
sinos do sono, a explosão de alegria profana, a revelação da vida, o arroubo, a
aparição do anjo, a glória.
Clarice
Lispector inaugura a prosa romanesca com este momento da obra de Joyce. O termo
epifania jamais usa e, se tem consciência desse processo, não o demonstra
claramente.
Observa-se
uma passagem de Perto do Coração Selvagem,
que remete, apesar da situação diversa, ao episódio paradigmal da moça-na-água,
de Joyce. Trata-se do capítulo “O banho...”:
A água cega e surda, mas alegremente não-muda brilhando e
borbulhando de encontro ao esmalte claro da banheira, o quarto abafado de
vapores mornos, os espelhos embaçados, o reflexo do corpo já nu de uma jovem
nos mosaicos úmidos das paredes.
A moça ri mansamente de alegria de corpo. Suas pernas
delgadas, lisas, os seios pequenos brotaram da água. Ela mal se conhece, nem cresceu de todo,
apenas emergiu da infância. Estende uma perna, olha o pé de longe, move-o
terna, lentamente como a uma asa frágil. Ergue os braços acima da cabeça, para
o teto perdido na penumbra, os olhos fechados, sem nenhum sentimento, só
movimento. O corpo se alonga, se espreguiça, refulge úmido na meia escuridão –
é uma linha tensa e trêmula. Quando abandona os braços de novo se condensa,
branca e segura. Ri baixinho, move o longo pescoço de um a outro lado, inclina
a cabeça para trás [...]. – Ri de novo, em leves murmúrios como os da água. Alisa a cintura, os quadris, sua vida.
Imerge na banheira como no mar. Um mundo morno se fecha
sobre ela silenciosamente, quietamente (LISPECTOR, apud MELO, 2008, p. 14-15).
Todo
um processo se desencadeia para sugerir um corpo nascente de mulher. Fundem-se
o movimento e o tato, e a moça alisa sua própria vida, numa referência
metonímica, significada pelos quadris. A invasão da maré no corpo da moça é uma
metáfora do ritual da iniciação para a vida, simbolizando a alegria da
puberdade.
Vislumbra-se
a crise da identidade, quando a moça, emergindo da infância, não se reconhece.
Essa crise provoca um questionamento progressivo e as sensações de medo e
desconforto. É como se o esfriar da água assinalasse o término da infância; e o
emergir da banheira, a chegada da puberdade.
Segundo
Sá (2000, P. 169), são inúmeras, inacabadas, as epifanias de beleza nos livros
de Clarice Lispector: os cavalos brancos, a pantera, o vento, os amantes,
enfim, todos os intervalos da vida que a preenchem e dela transbordam.
Seus
momentos epifânicos não são necessariamente transfigurações do banal em beleza. Muitas
vezes, como marca sensível da epifania crítica, surge o enjoo, a náusea. A
transfiguração não é radiosa, mas se faz no sentido do mole, do engordurado e
demoníaco.
Em
Clarice Lispector, existe toda uma gama de epifanias de beleza e visão. Mas
também uma outra – de epifanias críticas e corrosivas, epifanias comoventes e
das percepções decepcionantes, seguidas de náusea ou tédio: os seios flácidos
da tia que a acolhem depois da morte do pai, o professor hipocondríaco rodeado
de chinelos e remédios, o marido Otávio, fraco e incapaz de agredir a vida, a
barata, massa informe de matéria viva.
Embora
não exista em
Clarice Lispector nem sequer a menção da palavra epifania,
pode-se deduzir de sua ficção toda uma poética do instante, essencialmente
ligada à linguagem, enquanto questiona o próprio ato de nomear os seres, o
próprio fazer artístico.
Para
Lispector, a graça da epifania é uma espécie de graça profana; não o êxtase ou
a graça dos santos. É estar perto do coração selvagem, da vida, é captar os
instantes ininterruptamente e banhar-se deles e neles. É atingir o âmago da existência. É sentir-se
pleno, borbulhando de vida.
O
estado de graça da epifania não tem a ver com meditação ou religiosidade. Nem
com alucinações ou devaneios. Vai muito além daquele sentido pelos santos. Em
pleno cotidiano, ela acaba de tomar café e estava simplesmente vivendo ali
sentada, com um cigarro queimando no cinzeiro (LISPECTOR, 1994a, p. 94).
Uma
das confissões da autora, a respeito de si mesma, é a de ter um estilo humilde,
um estilo de busca. Não estariam esses dois polos em constante oposição: o modo
de iluminação epifânico, extasiante, glorioso e o estilo humilde, rastrante da
antiepifania, feito de repetições, em que o silêncio encobre a personagem, mas
não o narrador?
O
texto clariceano pode falhar como informação estética, tanto nos seus “clarões”
como nos seus “padrões”, ambos, de certo modo, epifânicos. Na sua luta pela
expressão, Clarice pode capitular no banal, na repetição diluída, ao nível da
mera redundância. Com o intento de repetir-se, ela pode desepifanizar o achado
primeiro e a metáfora pode tornar-se banal e lexical. E nas alternâncias entre
um estilo brilhante e um estilo pobre, ou na confluência de ambos, que se pode
encontrar o seu limite como romancista.
Em
A paixão segundo G. H., Clarice
Lispector dá voz a um interlocutor fictício dentro da própria ficção. Desse modo, ela assinala a função fática de
Jakobson e desvela a própria estrutura narrativa. Para narrar, é preciso um
interlocutor, nem que seja para manter o circuito comunicativo.
Recorrendo
a um interlocutor imaginário, G. H. inicia a narrativa de sua paixão e, com o
auxílio desse interlocutor, constrói uma narrativa densa e sua respectiva
leitura.
Então,
a solução encontrada por G. H. é fingir que escreve para alguém. Mas esse
alguém, ao mesmo tempo em que se apresenta como um auxílio, também a ameaça:
“Mas receio começar a compor para poder ser entendida pelo alguém imaginário,
receio começar a fazer um sentido...” (LISPECTOR, 1994b, p. 15).
Clarice
Lispector não usa a epifania do vocábulo, em si mesmo, não cria
palavras-metáforas como Joyce. Seu caminho é próprio. A epifania interior por
que passam as diversas personagens de sua escritura corporifica-se na
linguagem, na luta com as palavras para dizer dos acontecimentos, experiências,
sentimentos, angústias e impossibilidades.
Professor José Fábio Marques de Santana
´Professor de Filosofia e Literatura no Colégio Compacto de Piancó
Professor de Língua Inglesa na SMEC/São Mamede - PB
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