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Patos, PB, Brazil
Professor de Filosofia e Literatura na Rede Privada de Ensino desde 2003 (Colégio Compacto); professor de Língua Inglesa no Município de São Mamede (CENEC); Militante Sindicalista ligado ao SINFEMP (Patos e São Mamede); Diretor Estadual de Imprensa e Divulgação da CTB/PB

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

A EPIFANIA NAS OBRAS DE CLARICE LISPECTOR

EPIFANIA CLARICEANA

O título do primeiro livro de Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem, inspira-se em Joyce. A epígrafe dessa obra, publicada em 1944, é retirada do Retrato do artista quando jovem e diz textualmente: “Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida” (LISPECTOR, apud MELO, 2008, p. 13).
O texto precede uma das mais características epifânicas de Joyce, traduzida num longo trecho em que se faz presente o prazer da leitura. Elementos epifânicos fundamentais estão aí presentes, desde o seu começo: a visão transfigurada, o deslumbramento da beleza mortal, a contemplação, o silêncio sagrado, o som dos sinos do sono, a explosão de alegria profana, a revelação da vida, o arroubo, a aparição do anjo, a glória. 
Clarice Lispector inaugura a prosa romanesca com este momento da obra de Joyce. O termo epifania jamais usa e, se tem consciência desse processo, não o demonstra claramente.
Observa-se uma passagem de Perto do Coração Selvagem, que remete, apesar da situação diversa, ao episódio paradigmal da moça-na-água, de Joyce.  Trata-se do capítulo “O banho...”:

A água cega e surda, mas alegremente não-muda brilhando e borbulhando de encontro ao esmalte claro da banheira, o quarto abafado de vapores mornos, os espelhos embaçados, o reflexo do corpo já nu de uma jovem nos mosaicos úmidos das paredes.  
A moça ri mansamente de alegria de corpo. Suas pernas delgadas, lisas, os seios pequenos brotaram da água.  Ela mal se conhece, nem cresceu de todo, apenas emergiu da infância. Estende uma perna, olha o pé de longe, move-o terna, lentamente como a uma asa frágil. Ergue os braços acima da cabeça, para o teto perdido na penumbra, os olhos fechados, sem nenhum sentimento, só movimento. O corpo se alonga, se espreguiça, refulge úmido na meia escuridão – é uma linha tensa e trêmula. Quando abandona os braços de novo se condensa, branca e segura. Ri baixinho, move o longo pescoço de um a outro lado, inclina a cabeça para trás [...]. – Ri de novo, em leves murmúrios como os da água.  Alisa a cintura, os quadris, sua vida.
Imerge na banheira como no mar. Um mundo morno se fecha sobre ela silenciosamente, quietamente (LISPECTOR, apud MELO, 2008, p. 14-15).

Todo um processo se desencadeia para sugerir um corpo nascente de mulher. Fundem-se o movimento e o tato, e a moça alisa sua própria vida, numa referência metonímica, significada pelos quadris. A invasão da maré no corpo da moça é uma metáfora do ritual da iniciação para a vida, simbolizando a alegria da puberdade. 
Vislumbra-se a crise da identidade, quando a moça, emergindo da infância, não se reconhece. Essa crise provoca um questionamento progressivo e as sensações de medo e desconforto. É como se o esfriar da água assinalasse o término da infância; e o emergir da banheira, a chegada da puberdade.    
Segundo Sá (2000, P. 169), são inúmeras, inacabadas, as epifanias de beleza nos livros de Clarice Lispector: os cavalos brancos, a pantera, o vento, os amantes, enfim, todos os intervalos da vida que a preenchem e dela transbordam. 
Seus momentos epifânicos não são necessariamente transfigurações do banal em beleza. Muitas vezes, como marca sensível da epifania crítica, surge o enjoo, a náusea. A transfiguração não é radiosa, mas se faz no sentido do mole, do engordurado e demoníaco.
Em Clarice Lispector, existe toda uma gama de epifanias de beleza e visão. Mas também uma outra – de epifanias críticas e corrosivas, epifanias comoventes e das percepções decepcionantes, seguidas de náusea ou tédio: os seios flácidos da tia que a acolhem depois da morte do pai, o professor hipocondríaco rodeado de chinelos e remédios, o marido Otávio, fraco e incapaz de agredir a vida, a barata, massa informe de matéria viva.
Embora não exista em Clarice Lispector nem sequer a menção da palavra epifania, pode-se deduzir de sua ficção toda uma poética do instante, essencialmente ligada à linguagem, enquanto questiona o próprio ato de nomear os seres, o próprio fazer artístico.
Para Lispector, a graça da epifania é uma espécie de graça profana; não o êxtase ou a graça dos santos. É estar perto do coração selvagem, da vida, é captar os instantes ininterruptamente e banhar-se deles e neles.  É atingir o âmago da existência. É sentir-se pleno, borbulhando de vida. 
O estado de graça da epifania não tem a ver com meditação ou religiosidade. Nem com alucinações ou devaneios. Vai muito além daquele sentido pelos santos. Em pleno cotidiano, ela acaba de tomar café e estava simplesmente vivendo ali sentada, com um cigarro queimando no cinzeiro (LISPECTOR, 1994a, p. 94).
Uma das confissões da autora, a respeito de si mesma, é a de ter um estilo humilde, um estilo de busca. Não estariam esses dois polos em constante oposição: o modo de iluminação epifânico, extasiante, glorioso e o estilo humilde, rastrante da antiepifania, feito de repetições, em que o silêncio encobre a personagem, mas não o narrador?
O texto clariceano pode falhar como informação estética, tanto nos seus “clarões” como nos seus “padrões”, ambos, de certo modo, epifânicos. Na sua luta pela expressão, Clarice pode capitular no banal, na repetição diluída, ao nível da mera redundância. Com o intento de repetir-se, ela pode desepifanizar o achado primeiro e a metáfora pode tornar-se banal e lexical. E nas alternâncias entre um estilo brilhante e um estilo pobre, ou na confluência de ambos, que se pode encontrar o seu limite como romancista.
Em A paixão segundo G. H., Clarice Lispector dá voz a um interlocutor fictício dentro da própria ficção.  Desse modo, ela assinala a função fática de Jakobson e desvela a própria estrutura narrativa. Para narrar, é preciso um interlocutor, nem que seja para manter o circuito comunicativo. 
Recorrendo a um interlocutor imaginário, G. H. inicia a narrativa de sua paixão e, com o auxílio desse interlocutor, constrói uma narrativa densa e sua respectiva leitura.
Então, a solução encontrada por G. H. é fingir que escreve para alguém. Mas esse alguém, ao mesmo tempo em que se apresenta como um auxílio, também a ameaça: “Mas receio começar a compor para poder ser entendida pelo alguém imaginário, receio começar a fazer um sentido...” (LISPECTOR, 1994b, p. 15).

          Clarice Lispector não usa a epifania do vocábulo, em si mesmo, não cria palavras-metáforas como Joyce. Seu caminho é próprio. A epifania interior por que passam as diversas personagens de sua escritura corporifica-se na linguagem, na luta com as palavras para dizer dos acontecimentos, experiências, sentimentos, angústias e impossibilidades.


Professor José Fábio Marques de Santana
´Professor de Filosofia e Literatura no Colégio Compacto de Piancó
Professor de Língua Inglesa  na SMEC/São Mamede - PB

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