Total de visualizações de página

Quem sou eu

Minha foto
Patos, PB, Brazil
Professor de Filosofia e Literatura na Rede Privada de Ensino desde 2003 (Colégio Compacto); professor de Língua Inglesa no Município de São Mamede (CENEC); Militante Sindicalista ligado ao SINFEMP (Patos e São Mamede); Diretor Estadual de Imprensa e Divulgação da CTB/PB

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

ANÁLISE LITERÁRIA I (MISS ALGRAVE)

ANÁLISE DO CONTO MISS ALGRAVE, DA OBRA "VIA CRUCIS DO CORPO", DE CLARICE LISPECTOR

Em um de seus depoimentos, Clarice Lispector diz: “Meus livros, felizmente para mim, não são superlotados de fatos, e sim, da repercussão dos fatos nos indivíduos” (LISPECTOR, apud BORELLI, 1981, p. 28). Nesse sentido, nosso objetivo nesta análise é o de mostrar como tal repercussão aparece em sua obra, especificamente, em um conto — “Miss Algrave”.
O conto retrata a história de uma mulher pudica (personagem Ruth Algrave), que se reprime e vê em tudo algum tipo de pecado. Em sua alimentação, não come carne; em sua higiene, ao tomar banho, não se despe; não vê TV, pois acha o que é mostrado obsceno — um homem e uma mulher se beijando, por exemplo. Para ela, ser uma “datilógrafa perfeita”, tomar o seu chá, alimentar os pombos de sua janela, visitar velhinhas é o que lhe parece felicidade.
Em uma visita que recebe Ruth Algrave, visita de alguém não visto, a felicidade é sentida, isto é, ela conhece o que é viver. Após experimentar o gozo, percebe que, aquilo que anteriormente considerava pecado, agora, constitui-se no prazer da vida. O lençol manchado de sangue é o troféu disso. A carne, antes abominada, passa a ser devorada com sangue; o vinho é degustado com prazer; além disso, resolve não ser mais a “datilógrafa perfeita”.
Sente saudade do que a proporcionou sentir o gozo, Ixtlan, e, para saciá-la, “convida” um homem no Picadilly Circle (a história se passa em Londres) para “acompanhá-la” ao seu apartamento. Ela usa seu dinheiro para comprar um vestido vermelho bem decotado. Pensa convidar seu chefe para “deitar-se” com ela e tem a certeza de que ele aceitará, já que ele vive com uma mulher insignificante, retrato do que ela, Miss Algrave, foi.
Retomando o depoimento dado por Lispector a Borelli, observamos que Ruth Algrave é uma personagem exemplar disso a que o depoimento se refere. A personagem consegue, por meio da oposição “essência” X “aparência”, fazer com que a essência venha à tona e que a aparência seja lateralizada. Isso se dá porque a personagem reage aos fatos que lhe acontecem.
Percebe-se então que a idéia da paixão enquanto sofrimento, enquanto padecimento está nessa personagem embutida. Miss Algrave padece o não conhecimento, padece a incerteza do ser-no-mundo. Esse padecimento, essa paixão necessária é a porta para o erotismo, erotismo que de certo modo empurra a personagem para o processo epifânico, para o descobrimento de si mesma e, por isso, a manifestação ao mundo.
A construção da personagem permite que ela possa ter tal reação diante de tudo o que ocorre com ela, de modo a provocar mudanças em sua vida. Prova disso é a carne, antes abominada, agora comida com sangue, isto é, a aparência cedeu à essência. “Então, no Domingo, na hora do almoço, comeu filet mignon com purê de batata. A carne sangrenta era ótima. E tomou vinho tinto italiano”. (LISPECTOR, 1998, p. 22)
Essa mudança caracteriza, possivelmente, o que Clarice Lispector entenda como “repercussão dos fatos nos indivíduos”. Dessa forma, Miss Algrave representa, com bastante propriedade, o existencialismo clariceano, que Coelho (apud BORELLI, 1981 p. 182) diz ser

a denúncia da superficialidade estéril da vida que aprisiona os indivíduos na rotina cotidiana, e a intuição ainda confusa de que haveria algo grandioso a ser descoberto para além das formas vulgares da vida — a verdadeira vida criativa que levaria os seres humanos à autodescoberta e à plenitude de existir”.

No conto, Miss Algrave protesta a todo instante e de toda maneira contra aquilo que ela julga imoral: o sexo. Na solidão de sua vida mesquinha e fútil, lembranças de suas primeiras manifestações sexuais a atormentam. Tudo corria, normalmente com Ruth Algrave, descendente de irlandeses, vivia para o
trabalho; era uma datilógrafa perfeita. Seu chefe nunca olhava para ela e tratava-a, felizmente, com respeito, chamando-a de Miss Algrave. Esses dados, são particularmente interessantes, pois fazem menção a uma personagem que será criada posteriormente por Lispector no livro A hora da estrela. Pois bem, se observarmos, atentamente, Ruth Algrave apresenta indícios da nordestina Macabéia. A personagem em questão é uma datilógrafa “estrangeira” numa cidade grande, ansiosa por encontrar alguém que a auxilie a romper as barreiras que traz em si. Logo de início, a narrativa nos aponta um problema: a solidão e a monotonia na qual vivia a mulher. Ela que, embora fosse possuidora de um corpo bonito, era virgem, ninguém a olhava; nem “nunca ninguém havia tocado nos seus seios.” (LISPECTOR, 1998, p.14) Ao que parece, esse é o grande problema, a personagem, cuja idade desconhecemos, mas ao que indica se encontra em meia idade, ainda não experienciou uma troca afetiva maior. Por isso, se fechara, ficando as lembranças a atormentá-la: “[...] quando era pequena, com uns sete anos de idade, brincava de marido e mulher com seu primo Jack, na cama grande da vovó. E ambos faziam tudo para ter filhinhos sem conseguir. Nunca mais vira Jack nem queria vê-lo. Se era culpada, ele também o era.” (LISPECTOR, 1998, p.13)
Pelo que se observa, a personagem carrega um sentimento de culpa que advém, entre outros            fatores, de um processo de repressão, que, conforme Chauí (2008, p. 49), foi responsável pela idéia da sexualidade como pecaminosa, imoral e viciosa. Segundo a autora, herdamos da cultura judaica cristã uma visão extremamente repressora da sexualidade, mais acentuadamente marcada, como sempre, para o contingente feminino. Nossas raízes culturais estão impregnadas de uma visão distorcida da sexualidade, onde a prática da repressão é o comportamento usual, ao menos para as mulheres, quando não também para os homens. Embora nossa civilização tenha, nos últimos séculos, vivido alguns momentos de maior liberalidade, essa visão distorcida da sexualidade foi a tônica principal, mantida durante todos esses séculos em que ela vem se cristalizando. Diga-se de passagem que, mesmo em seus momentos de mais liberdade, o exercício pleno da sexualidade sempre foi apanágio das pessoas adultas, que vêem com maus olhos a sexualidade dos adolescentes, ridicularizam as manifestações sexuais da terceira idade e negam - ao menos negaram até há poucas décadas - a sexualidade na infância. Esse paradigma de comportamento se faz sentir pelas mulheres construídas ao longo da produção literária de Lispector e outras mulheres da literatura brasileira. Nesse contexto, a mulher sente-se “desorientada” em relação a sua libido, aos desejos inerentes de seu corpo. Pensamos que advém desse fato o comportamento da personagem do conto em questão. É isso que faz Ruth Algrave manifestar um sentimento de repulsa com relação à sua sexualidade, fazendo-a até renegar seu próprio corpo e fechar os olhos aos casais que se beijavam ao seu redor, quando estava no Hyde Park . Não permitia a si os prazeres da carne, literalmente, (sequer comia carne). Não ousava olhar para não enxergar nada de ordem sexual, não se aproximava daquilo que poderia lhe causar prazer. Negava a sexualidade alheia, mais ainda, a sua própria, pois não conseguia olhar para seu próprio corpo. E encontro erótico começa com a visão do corpo desejado. Vestido ou desnudo, o corpo é uma presença, uma forma que, por um instante, é todas as formas do mundo. Por isso, a mulher do conto em análise procura fechar os olhos perante o corpo, pois sabe que percebê-lo, tocá-lo é abrir-se para fantasias e afastar-se do cotidiano. “Tomava banho só uma vez por semana, no sábado. Para não ver o seu corpo nu, não tirava nem as calcinhas nem o sutiã.” (LISPECTOR, 1998, p.14) Por esse trecho pode-se arriscar uma possível leitura freudiana da sexualidade: teria Ruth Algrave sofrido algum trauma em relação a sua sexualidade? Em “O mal-estar na civilização”, Freud aponta o papel desempenhado pelo amor na origem da consciência e a inevitabilidade do sentimento de culpa. Conforme o cientista a civilização impõe ao indivíduo certas normas que regula o seu desejo, gerando assim um conflito. Assim, o conflito passa a existir assim que os homens decidem viver juntos e enquanto a comunidade não assume outra forma que não a família, o conflito (eros X instinto de morte) se expressa no complexo edipiano, estabelece a consciência e cria o primeiro sentimento de culpa.

Conhecemos, assim, duas origens do sentimento de culpa: uma que surge do medo de uma autoridade, e outra, posterior, que surge do medo do superego. A primeira insiste numa renúncia às satisfações instintivas; a segunda, ao mesmo tempo em que faz isso, exige punição, de uma vez que a continuação dos desejos proibidos não pode ser escondida do superego. [...] em primeiro lugar, vem a renúncia ao instinto, devido ao medo de agressão por parte da autoridade externa. (é a isso, naturalmente, que o medo da perda do amor equivale, pois o amor constitui proteção contra essa agressão punitiva.) Depois, vem a organização de uma autoridade interna e a renúncia ao instinto devido ao medo dela, ou seja, devido ao medo da consciência. (FREUD, 1997, p. 100, os grifos são do autor)

O sentimento de repulsa, manifestado por Ruth Algrave e pelas personagens dos outros textos reunidos nesse livro, parece remeter aos dois aspectos de uma vivência culposa. Visto que, para Freud, o sentimento de culpa remete a duas origens, mas estas estão sempre relacionadas para o campo de estudo da consciência social, para a busca de entendimento de como os seres humanos na sua relação com o mundo social e natural, apreendem esses mundos e a si mesmos, enquanto seres pensantes. Eis a razão pela qual Ruth Algrave manifesta seu repúdio: “lamentava muito ter nascido da incontinência de seu pai e de sua mãe, sentia pudor deles não terem tido pudor.” (LISPECTOR, 1998, p. 16-17) Ela, então, cria uma situação imaginária para sua felicidade; imagina-se sendo deflorada por um ser de outro planeta, Ixtlan, vindo de Saturno.

Foi então que aconteceu.
Sentiu que pela janela entrava uma coisa que não era um pombo. Teve medo. Falou bem alto:
- Quem é:
E a resposta veio em forma de vento:
- Eu sou um eu.
[...] - vim de Saturno para amar você.
- Mas eu não estou vendo ninguém! Gritou.
E sentia-o mesmo. Teve um frisson eletrônico.

A partir desse ponto, pode-se perceber, duas faces do erotismo sendo despontada a partir do desenvolvimento da atitude da personagem.

O erotismo encarna duas figuras emblemáticas: a do religioso solitário e a do
libertino. Emblemas opostos, mas unidos no mesmo movimento, ambos negam a reprodução e são tentativas de salvação ou libertação pessoal diante de um mundo caído, perverso, incoerente ou irreal. (PAZ, apud COELHO 1983, p. 187).

Vê-se, pois que algo semelhante ocorre com Miss Algrave, de moça recatada, que repudia o sexo, passa a um comportamento inverso: a prostituta.
Nesse sentido, se pode compreender, que as personagens clariceanas, não encontrando no outro uma possibilidade de preenchimento de seu vazio, buscam a felicidade com o desconhecido, aspecto defendido pelos místicos cabalistas. Assim, pode-se afirmar que o processo de reversão da personagem brota da experiência mística. A personagem busca o amor pleno, no entanto, os limites impostos pela castração a impedem de encontrá-lo, o que a faz buscar um gozo para além do fálico.
O gozo é advindo do Eros, ele como porta mágica para o mundo novo, irreal para os outros, porém real para aqueles que o querem e o buscam. Para tudo isso incorre paixão, padecimento. Miss Algrave vive um gozo que só existiu após o padecimento, ela conhece a si após conhecer o seu corpo. Eis então a ligação entre paixão e erotismo.
A experiência mística passa, em primeiro lugar, pela experiência da dor, uma aflição no corpo, é o que ocorre com a mulher em questão. Sobre esse aspecto, é importante comentar que, nesse livro e, especialmente, nesse conto, Lispector, organiza um discurso, sobre o erotismo, numa espécie de jogo de paradoxos, em que - o desejo carnal de suas personagens ganha certa transcendência ao mesmo tempo em que é demasiadamente mundano - o ato sexual se transforma num ritual sagrado, em que a Divindade é o estrangeiro por excelência. Esse jogo entre sagrado e profano permeia a maioria de seus contos eróticos. Pode-se, então, falar em um Eros divino, um sexo místico pelo qual um Ser misterioso penetra, radicalmente, no corpo e na alma. Nesse contexto, o gozo de Ruth Algrave é altamente erótico no sentido divino. Ela constrói esse novo sexo místico. No caso da alma humana feminina, trata-se de um gozo e uma dor ao mesmo tempo. Como até então não ocorrera o gozo carnal, ocorre agora em outro plano, remetendo a uma relação com a divindade. “Deus iluminava seu corpo”. (LISPECTOR, 1998, p.18)

Eles se entendiam em sânscrito. Seu contato era frio como o de uma lagartixa. Dava-lhe calafrios. Ixtlan tinha sobre a cabeça uma coroa de cobras entrelaçadas, mansas pelo terror de poder morrer. O manto que cobria o seu corpo era da mais sofrida cor roxa, era ouro mau e púrpura coagulada. Ele disse: - Tire a roupa. Ela tirou a camisola. A lua estava enorme dentro do quarto. Ixtlan era branco e pequeno. Deitou-se ao seu lado na cama de ferro. E passou a mão pelos seus seios. Rosas negras. Ela nunca tinha sentido o que sentiu. Era bom demais Tinha medo que acabasse. Era como se um aleijado jogasse no ar o seu cajado. (LISPECTOR, 1998, p.16-17)

Vê-se, pela descrição do narrador, que se trata da “experiência interior”. Ao que se sabe, a experiência interior é um tipo de sentimento que não isola a matéria, não exclui o corpo. A experiência interior procura o êxtase, sem a exclusão do corpo e termina por afirmá-lo como lugar receptáculo do gozo. No corpo – o erotismo – o orgasmo é algo que não pode ser cercado pela razão, é algo que está completamente fora de toda apreensão e conhecimento – é um estado que está fora-de, é o êxtase.
Nesse livro, o grande personagem é o corpo feminino, depositário do desejo. Clarice mostra, por meio de uma linguagem recheada de simbologia, o conflito por que passa as mulheres em ter de esconder e, até mesmo, negar àquilo que lhe é inato: sua sexualidade. O leitor, por meio dessa personagem, assiste a impossibilidade de fazer calar o corpo desejante. Assim, dentre outros aspectos, a repressão é o processo que perdura no comportamento das personagens desse livro. Clarice, nessa obra, vem tratando desse tema, o da sexualidade reprimida, o da homossexualidade feminina, temas desconfortantes e pouco lidados em literatura. Constrói, para isso, figuras femininas para desenvolverem esse discurso. Percebe-se, nessa narrativa, a ocorrência de um processo de liberação. No início da história vemos a figura feminina numa posição desconfortante, no final ocorre uma libertação. As mulheres resolvem agir, tomar uma atitude que as tire da situação de opressão. A verdade é que elas tomam a decisão de serem felizes, mesmo que isso signifique ir contra as regras, as normas e conceitos - ou preconceitos - vigentes e respeitados. Esse é o território em que a escritura de Clarice se desenha: no “litoral” entre o ser e o dizer. Convém lembrar daquilo que orienta a psicanálise: o homem em sua incompletude assume um caráter irreparável e paradoxal. Entenda-se que, por estar submetido às leis da linguagem, que escamoteam a realidade, o homem está alienado do seu ser; e, sendo assim, requer sempre algo que o complete, que o represente. Observa-se, que o que incita, o desejo é o que está oculto, a partir do momento em que se expõe há uma vulgarização, ocorre a “morte” da libido. Se o sexo é reprimido o simples fato de falar dele, ou seja, a abertura constituísse uma transgressão. Remete, também, ao preceito de Barthes sobre o gozo. Salienta o filósofo francês que a abertura não é erótica e, sim a intermitência.

O lugar mais erótico de um corpo não é lá onde o vestuário se entreabre? Na perversão (que é o regime do prazer textual) não há ‘zonas erógenas’ expressão aliás bastante importuna): é a intermitência como o disse muito bem a psicanálise, que é erótica: a da pele que cintila entre duas peças (as calças e a malha), entre duas bordas ( a camisa entreaberta, a luva e a manga); é essa cintilação mesma que seduz, ou ainda: a encenação de um aparecimento-desaparecimento. (BARTHES, 1996, p. 17)

Assim, Clarice parece querer nos mostrar que o desejo feminino não passa somente pela questão da liberdade sexual. Suas personagens não procuram apenas a satisfação da carne, a materialização do desejo e sim buscam uma experiência do espírito que é o caminho da plenitude. Daí o retorno à carência, à incessante busca, à consciência do “impossível”, ou à consciência da morte, como lugar da superação de descontinuidade. Sua arte literária traz à tona uma dor existencial, secreta, dilacerante, às vezes carregada também, de ironia. Outras vezes brinda-nos com toque de humor. Na verdade sua literatura revela uma intensa paixão pela vida.


Professor José Fábio Marques de Santana
´Professor de Filosofia e Literatura no Colégio Compacto de Piancó
Professor de Língua Inglesa  na SMEC/São Mamede - PB

Um comentário:

William Thomaz disse...

Ótima análise! Obrigado pela aula